Palco Principal – Terminada a carreira de 25 anos dos Delfins, seguir um caminho a solo foi o principal objetivo do Miguel Angelo?

Miguel Angelo – Antes de mais, 25 anos é muito tempo. Aliás, nem sei como é que nos aguentámos tanto tempo. Lembro-me que foi um caminho muito progressivo desde o início dos anos 80. Entre 84 e 87, os Delfins fizeram dois singles para a Fundação Atlântica, que era uma editora portuguesa independente, e tocavam em bares, em Cascais e na ribeira do Porto. Não tocávamos em Lisboa, porque na altura já diziam “Olha, os betinhos de Cascais” [risos]. Dávamo-nos muito bem com a malta do Norte, do Aniki Bobo, do Meia Cave e do Cova Funda – uma série de bares com música ao vivo. Na altura, aquela zona era o que é, atualmente, a zona das galerias, onde se encontram milhares de pessoas e onde nós conhecemos alguns músicos do Norte. Foi lá que conheci o Rui Reininho e o Jorge Romão, o João Loureiro, a Ana Deus… Entretanto, a banda cresceu de forma gradual e, passados dez anos, tivemos um grande êxito, o nosso pico de carreira, com o “Caminho da Felicidade” e o “Saber Amar”, que venderam, num ano e meio, mais de meio milhão de discos – foi a loucura! Parámos um bocadinho e voltámos em 2000, com uma abordagem diferente da que tínhamos tido na primeira fase da banda. A partir do “Se7e”, o nosso disco mais polémico, foi uma espécie de Delfins 2.0. A década de 2000 foi muito experimental em termos de pop. Fizemos coisas mais eletrónicas no álbum “Babilónia”, até discos mais ligados ao rock e ao indie como o “DelfIns”. O último disco foi mais psicadélico… Nunca voltámos a ter aquela linguagem cristalina do pop que tínhamos tido até 1996. É giro podermos experimentar outras coisas, não ficarmos presos à mesma receita. Depois de todos estes anos juntos, decidimos que 25 anos é uma boa marca. Sempre quis fazer uma digressão de despedida – é uma coisa que acho muito gira. Mas sempre soube que, mesmo com o fim do grupo, não me ia desligar da música, que poderia continuar a minha carreira. É um pouco aquela ideia de podermos estar no próprio funeral a ver quem é que aparece. Sou fascinado pela história da música popular, dos grupos que vão crescendo, dos supergrupos que se formam – a nossa Resistência. Gosto da ascensão e da decadência, daquela fase do Elvis, muito gordo, a tocar em Las Vegas. As duas fazem parte da música pop e os Delfins tiveram um bocadinho de tudo.

PP – Ainda com os Delfins no ativo, o Miguel lançou, em 1998, um trabalho a solo. O que é que “Primeiro”, editado recentemente, tem que “Timidez” não teve?

MA – As pessoas perguntam-me muitas vezes por que é que este álbum se chama “Primeiro, quando, na realidade, tive outro disco. Não, “Timidez” não é um filho renegado. Foi um disco feito durante a pausa de três anos dos Delfins, depois do “Saber Amar”, na sequência de um convite. Tinha algumas covers de músicas – dos The Divine Comedy, Legião Urbana, The Smiths… - que gostava, guardadas em casa, e que as pessoas me encorajaram a editar. Lembro-me que, propositadamente, fiz o disco com o som mais afastado possível do som dos Delfins, só com teclados e sem guitarras, com samplers de instrumentos de orquestra. Quis assumir um aspeto mais crooner, também porque gosto de cantores mais antigos – aquela primeira fase dos The Walker Brothers, do Scott Walker, do Frank Sinatra… Fiz um bocadinho de «cantor de baladas». Mesmo não tendo uma orquestra verdadeira, tinha uma virtual e uma parte rítmica mais eletrónica. Mas lá está: foi uma experiência. Nunca quis substituir a carreira nos Delfins por uma carreira a solo. É por isso que o novo álbum se chama “Primeiro” – é quase como uma declaração de intenções: “agora é a sério, vou construir uma carreira a solo”. Espero, com as novas canções, conseguir chamar outras pessoas que, porventura, não me ouviram nos Delfins, talvez porque não tinham idade… Nesta tournée, o que está a resultar muito bem é o facto de eu tocar quase o álbum todo e apenas meia dúzia de temas dos Delfins. As pessoas estão muito recetivas às canções novas. Para mim é muito encorajador.

PP – Antes da chegada de “Primeiro”, foi gravado o “Ray’s Bar EP”. A forma caseira como este foi trabalhado influenciou o processo criativo do novo álbum?

MA – O “Ray’s Bar” foi gravado simultaneamente com o “Primeiro”, mas foi lançado mais cedo, como EP digital. Na realidade, os temas do “Ray’s Bar” estiveram na origem do que viria a ser o LP. Foram as coisas que fizemos juntos, quando começámos a pré-produção, há dois anos. Foram músicas feitas só com guitarras. Não quis ir tanto à música popular, mas à essência mais acústica, country e até folk. Nessa altura, ouvi coisas muito antigas, como Nash Young, e coisas mais recentes, como Fleet Foxes, The Lumineers ou Mumford and Sons – bandas que recuperam os instrumentos acústicos. Em alguns temas, o “Ray’s Bar” tem uma toada quase country. É giro veres como, de um lado, tens o Kanye West com 50 mil leds e beats, e depois vêm aqueles gajos a bater com o pé, a tocar guitarras e a cativar as pessoas à sua maneira. Tudo isto acontece naturalmente, por oposição a esta era digital em que estamos a viver. Hoje há imensos projetos eletrónicos homemade, feitos no computador. Há muita gente a fazê-los. Há uns anos, no Meco, no festival Super Bock Super Rock, fui ver Sharon Jones, que é brilhante. Estava uma série de malta nova a olhar e viam quatro gajos nos metais, contrabaixo, guitarras, um órgão antigo de madeira – tudo com aquela expressão de entusiasmo por verem uma banda a sério, tudo em ensemble. Durante muitos anos houve uma presença forte da dance music, com as suas várias formas e estilos, e é óbvio que o público mais jovem esteja atento ao dubstep e derivados. Mas depois vêm os Lumineers com um êxito de primavera, com uns “hey” e uns “oh” lá para o meio - mais simples do que isso não pode ser. A música é uma pulsão que, ao vivo, se sente de uma maneira muito forte. Perguntaste sobre uma constelação e já estamos a sair do universo… [risos].

PP – Na digressão de apresentação de “Pirmeiro”, o Miguel é acompanhado por músicos que vêm da formação dos Delfins, como o Rui Fadigas e o Mário Andrade. Foi uma escolha propositada – o trabalhar em família?

MA – Temos o Fadigas, que é o único que era mesmo Delfim. O Mário Andrade, na guitarra elétrica, veio preencher o lugar do Fernando Cunha, que se afastou um ano antes da banda acabar. O Rogério, que está nos Ena Pá 2000 há uma década, foi o segundo guitarrista na tournée do “Saber Amar”, em que éramos 11 em palco – a chamada Orquestra Pop da altura. O Samuel está n’ A Naifa e a Dalila nos Quinta do Bil. Haver um conceito familiar acaba por dar algum conforto. É uma das coisas a guardar desta vida, se não seria muito solitária e muito chata.

PP – “Primeiro” podia ter sido um disco algo censurado pelos entusiastas dos Delfins, mas parece que estes não resistiram a um álbum tão positivo…

MA – Estava um bocadinho preocupado quando estávamos a fazer o disco porque, sempre que ligávamos a televisão, víamos as notícias deste declínio económico, e estávamos a fazer canções muito felizes. Eu dizia: “espera aí, nõs estamos dentro de uma bolha qualquer, o que é que se está a passar?”. Mas, ao mesmo tempo, pensei que era muito natural, enquanto compositor, criar uma reação àquilo que via e à frustração das pessoas que se encontram na rua. Acho que o papel da música é, especialmente, contrariar os tempos e dizer: “Espera lá, há vida para além disto, para além do ministro da economia”. A música tem aquele condão de unir as pessoas como poucas artes têm – consegue levantar o espírito. Há dias, ouvi na TSF um presidente de um banco a dizer: “A economia tem a ver com a psicologia: se as pessoas estiverem todas motivadas, as coisas vão melhorar”. É um bocadinho por aí. Tudo isto está ligadoà nossa cabeça e àquilo que achamos que pode acontecer. Mas sim, era um bocadinho estranho se o disco não fosse criticado. Mas o resultado que me interessa tem a ver com o público, com quantas pessoas vão ao concerto, se saem de lá contentes, se gostam das novas canções… Aquela história dos líderes de opinião deixa de fazer sentido com a quantidade de plataformas que existem. Já não há aqueles Papas da crítica que dizem o que é bom e mau. Felizmente, as novas gerações estão tão informadas e têm tanta bagagem que não precisam dessas coisas.

PP – Que marcas do passado podem ser encontradas neste novo registo?

MA – Sou a mesma pessoa, não mudei radicalmente. Quando fiz o “Timidez”, queria distanciar-me do som dos Delfins o mais possível, mas confesso que neste nem sequer pensei nisso. É um disco relaxado. Preocupei-me, sim, em fazer canções – com letra e estrutura clássica – e com a forma como estas iam soar ao vivo, tendo perfeita consciência que o core da minha atividade, como a de qualquer músico, são os concertos. Gastar rios de dinheiro em estúdio para fazer discos que depois não conseguem ser reproduzidos ao vivo – isso acabou completamente. Mas adiante. Há um otimismo e positivismo muito forte nas músicas dos Delfins que espelham o que está em mim e eu continuo a escrever da mesma maneira. Este disco tem uma sonoridade mais acústica, tem instrumentos com os quais nunca tinha gravado – a tuba, o violoncelo, o acordeão, enfim, instrumentos mais ligados à música tradicional -, mas eu continuo a fazer pop.

PP – Os Delfins foram uma das bandas portuguesas com mais sucesso no que respeita as vendas. A solo, e em tempos de crise, o fator comercial é uma preocupação acrescida?

MA – As coisas estão a mudar. Neste momento, a minha preocupação são os concertos. Se um grupo quiser sair de Lisboa e fazer 11 datas seguidas, se não conseguir uma parceria, pode ser complicado. Se não tivesse este apoio, teria que vir com um trio ou fazer uma coisa mais em conta. Mas as pessoas têm vindo ao nosso encontro – a tournée está a ser bem comunicada. O paradigma mudou. Já não se pensa se um disco vai vender até ser Platina. A rádio interessa muito, novamente… Com o declínio da televisão e com uma geração que se afastou deste meio, no outro dia alguém dizia: “Ai, o Top+ acabou”. Mas quem é que via, ainda, o Top+ do princípio ao fim? Se as pessoas vissem, não tinha acabado! Há mais interesse em consultar alguns blogues, ouvir outras plataformas… Às vezes, é bom que as coisas acabem – muda-se o enquadramento da informação e, quem trabalha, pode mudar o rumo da sua profissão. Os músicos fizeram isso com o mp3 e com a partilha de ficheiros, por exemplo. Mudámos todos a maneira de trabalhar…

PP – Profissionalmente, ainda tem muitos sonhos por concretizar, objetivos por alcançar?

MA – Quando era miúdo e comecei a ensaiar numa garagem em Cascais, o meu sonho de aspirante a músico era o maior de todos: ser maior do que os The Beatles! Essa ambição é que constrói a carreira e solidifica os passos que damos. Neste momento, peço muito pouco. Tive uma vida fantástica na música. Para o ano, vou fazer 30 anos de carreira com os Delfins, com a Resistência e outros. Conheci um naipe de músicos fantásticos, como os Wraygunn ou os Orelha Negra, por exemplo – pessoas incríveis e grandes músicos. Agrada-me fazer este caminho a solo e ter esta família à minha volta. Não faria sentido se fosse de outra maneira. As coisas cansam se formos muito ambiciosos, caem mal. Desde miúdo que digo que vivo num universo paralelo, que é o da música. Interessam-me mais as notícias num jornal de música do que num de economia ou de futebol. É este universo, pragmático e um pouco cego, que nos ajuda a conquistar os nossos sonhos.

PP – Entre tantos projetos – na música, na televisão, no cinema e até na literatura -, como é ser uma mente criativa em Portugal?

MA – É muito engraçado. Quando conhecemos músicos ou atores estrangeiros – uma vez jantei com o Win Wenders em Lisboa e já estive com malta dos The Sopranos, com os The Stranglers, uma banda que me influenciou muito na altura do punk dos Sex Pistols e dos The Clash -., há uma espécie de irmandade. Estamos a falar e apercebemo-nos que lemos os mesmos livros, que gostamos dos mesmos filmes. Até pode ser um tipo do metal – e eu sou da pop. Se for pessoal criativo, acontece numa escala planetária. Há uma ligação invisível e isso é que faz o mundo andar para a frente – não são os políticos [risos].

Sara Fidalgo