Enigmático. Será este o adjectivo usualmente mais utilizado para caracterizar M. Ward, músico norte-americano que alterna entre a edição de longas duração em nome próprio – seis até ao momento –, a colaboração com nomes da música como Cat Power, Beth Orton ou Norah Jones, e a participação em projectos tão diversos como os Monsters of Folk – com Connor Oberst – ou o duo She and Him – onde Ward é “Him” e a actriz Zooey Deschanel é “She”.

Ontem à noite, o belo cenário da Aula Magna assistiu à estreia absoluta de M. Ward em solo nacional, num concerto intimista, emocional e deveras surpreendente.

A entrada de Ward em palco foi um reflexo do estado enigmático do músico e da sua peculiar e abrangente visão da música: uma folk em estado bucólico, uma sensibilidade “lo-fi” para lá da era moderna, um antídoto infalível contra o country comercial, uma voz visitada por assombrações e uma guitarra que parece destilar veneno.

“Chinese Translation” ("Post-War", 2006) parecia estar a ser tocado por quatro mãos e, quanto a “Requiem” ("Post-War", 2006) – tema com a fantástica linha “His heart was stronger than a heavy metal bullet” – foi uma bonita homenagem a todos os soldados desconhecidos.

“Fuel For Fire” ("Transistor Rádio", 2005), momento sentimental, foi regado com muita harmónica e embebido no espírito crooner. Mais do que cantar, Ward conta-nos histórias através da música, em letras que são propícias à construção de quadros que ganham cores no imaginário individual de cada um.

“Hold Time” ("Hold Time", 2009), tocado ao piano, foi de uma intimidade quase cruel, uma radiografia de Ward de corpo inteiro.

“Paul`s Song” ("Transistor Rádio", 2005), tema que Ward disse ter composto num dia de chuva preso no carro, é a bonita história de um amor ausente, que nos anestesia o coração e faz com que, todas as cidades, vilas e aldeias, pareçam fotocópias sumidas.

“Poison Cup” ("Post-War", 2006) viu Ward vestir a pele de bruxa má, tentando vender à Branca de Neve uma bela e lustrosa maçã envenenada.

Em “Sad Sad Song”, Ward parecia cantar em ritmo de possessão, e quase se juraria que dos seus olhos saltavam faíscas de raiva.

Não faltaram as fantásticas versões a que M. Ward se tem dedicado: “Rave On” ("Hold Time", 2009), de Buddy Holly, tema que o músico confessou ser o seu predilecto de Holly; “Story of an Artist”, de Daniel Johnston, um elogio da loucura e da excentricidade – e que Ward dedicou aos artistas de Lisboa; e “Let`s Dance” ("Transfiguration of Vincent", 2003), original de David Bowie, que serviu para encerrar o concerto com chave de platina eque viu M. Ward agradecer ao público como um verdadeiro super-herói. Não um daqueles estilosos e carregados de super poderes como o Batman ou o Ciclope, antes um parente não assim tão afastado do “Kick-Ass” – alguém com um louco, estranho e grande coração.

Para o encore estavam reservadas duas pérolas românticas: “Eyes on the Prize” ("Post-War", 2006) e “Nobody Like You” ("Hold Time", 2009), que terminou com Ward em pé, numa dança invisível, a martelar o piano como um adolescente endiabrado.

Uns há que cantam em playback. Outros que disfarçam a voz com recurso a artifícios sonoros. Ontem, M. Ward surgiu na Aula Magna completamente exposto: sem banda, disfarces ou rede de segurança. E, se assim o risco de imperfeições é enorme, é também o estado perfeito para que o génio saia da lâmpada – e foi vê-lo a rodopiar, feliz da vida, entre as doutorais e o anfiteatro.

Pedro Miguel Silva