Em declarações à agência Lusa, o músico Renato Jr. sublinhou “a responsabilidade” que sentiu ao “mergulhar no universo poético de Natália [Correia]”, com a preocupação de “não desvirtuar” a intenção da escritora, ao musicar os seus poemas.

“As espinhas dorsais deste CD são a poesia da Natália e a minha música, depois cada intérprete empresta o seu ADN”, o que lhe concede "uma diversidade de géneros musicais", disse o músico, assegurando que “este é um álbum de militância”.

O projeto coincide com a celebração do centenário do nascimento de Natália Correia, ocorrido em 13 de setembro de 1923, nos Açores, e surgiu quando o autor de canções preparava uma outra “aventura musical” com músicos amigos.

“Conhecia Natália Correia, a sua irreverência, o seu empenho como cidadã, a deputada enérgica, e decidi-me mergulhar no seu universo poético”, contou o músico, reconhecendo as dificuldades de compor para a poesia de Natália Correia. “Não foi fácil”, disse.

NATALIA CORREIA

“Não são palavras de canção, muitas delas pouco utilizadas, mas foi ao mesmo tempo um desafio, e fui compondo, pensando em quem as ia interpretar”.

Renato Jr. tinha liderado anteriormente o projeto “Uma Mulher Não Chora”, lançado no final de 2019 no âmbito do Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres, e algumas das participantes fazem parte deste novo álbum, que conta com onze cantoras, com as quais já tinha trabalhado. As exceções são Áurea, que gravou “Sete Luas”, e Elisa Rodrigues, que interpreta “Encontro”.

Algumas intérpretes “foram motivadas para fora da sua zona de conforto”, como Mafalda Veiga, que interpreta “A Defesa do Poeta”, poema que Natália declama no álbum “Vinicius em Casa de Amália” (1969).

Renato Jr. referiu à Lusa que, para realizar este projeto, investigou e viu muito material de Natália Correia, nomeadamente a sua série documental apresentada na RTP, “Mátria” (1984), realizada por Dórdio Guimarães (1938-1997).

Do elenco de intérpretes fazem ainda parte Ana Bacalhau, que gravou “Rosto Invisível”, Katia Guerreiro, que interpreta “Creio”, Rita Redshoes, “De Amor Nada Mais Resta que Um Outubro”, a cantora Viviane, que gravou “Passageiro da Noite”, Patrícia Antunes e Patrícia Silveira, o único duo deste novo projeto, que gravaram “Livro dos Amantes”, e Sofia Escobar, que interpreta “Superação”.

Maria João dá voz à “Queixa das Almas Jovens Censuradas”, poema anteriormente gravado por José Mário Branco, com música da sua autoria, em 2019 recriado pelo brasileiro Luca Argel.

Renato Jr. exprimiu o desejo de que o CD leve “os mais novos - e todos - a descobrirem Natália Correia” a partir destas canções.

O projeto já foi apresentado na RTP, numa iniciativa da Sociedade Portuguesa e Autores, que gere os direitos autorais da escritora, na sequência de um concerto reservado ocorrido no passado mês de novembro, em Lisboa, mas Renato Jr. quer apresentá-lo noutros palcos e realçou a sua “encenação, numa referência ao Botequim, bar de que Natália era proprietária, na Graça, em Lisboa, e onde recebia intelectuais, artistas, políticos e quem a procurava".

Natália Correia fundou o Botequim com a artista plástica Isabel Meyreles - um dos nomes-chave do movimento surrealista português -, em 1971.

Uma das ideias, disse o músico à Lusa, é apresentá-lo nos Açores, terra de onde Natália era natural, mas para já tem agendado um espetáculo na Academia Almadense, em Almada, no próximo dia 8 de março, e conta ainda apresentá-lo em Valongo, no distrito do Porto, em Alcobaça, no distrito de Leiria, e em Barcelos, no distrito de Viana do Castelo.

Natália Correia nasceu há cem anos na Fajã de Baixo, na ilha de S. Miguel, e a sua obra abarca diferentes géneros literários, da poesia ao romance, ao teatro, à literatura de viagens e ao ensaio, envolvendo ainda vasta colaboração em publicações nacionais e estrangeiras.

“Não Percas a Rosa. Diário e algo mais”, que iniciou a 25 de Abril de 1974 e continuou até 20 de dezembro de 1975, teve edições em 1978 e 2003.

Estreou-se na literatura aos 22 anos (1946), com um romance juvenil, “Grandes Aventuras de um Pequeno Herói”, na mesma altura em que chegou ao jornalismo, no antigo Rádio Clube Português, cerca de três décadas antes de dirigir as revistas Século-Hoje (1975-1976) e Vida Mundial (1976).

O seu primeiro livro de poesia “Rio de Nuvens” data de 1947.

De sua autoria refira-se ainda os livros de poesia “Cântico do País Emerso” (1961), “O Vinho e a Lira” (1969) e “Mátria” (1967), “Memória da Sombra, versos para esculturas de António Matos” (1993).

A sua Poesia Completa, “O Sol nas Noites e o Luar nos Dias”, saiu em 1993 e foi reeditada em 2000.

Natália Correia coordenou várias antologias, como “Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica: dos cancioneiros medievais à atualidade”, saída em 1965 e que foi proibida pela Censura da ditadura do Estado Novo que a levou ao Tribunal e a uma sentença com pena suspensa. A obra foi publicada novamente em 2000.

Organizou igualmente a “Antologia de Poesia do Período Barroco” (1982).

Natália Correia voltou a tribunal por responsabilidade editorial na publicação das “Novas Cartas Portuguesas” (1972), de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, processo que deu origem a um imenso apoio internacional, e que acabou em absolvição, pouco depois da queda da ditadura, em 25 de Abril de 1974.

“D. João e Julieta” (1959), “O Homúnculo, tragédia jocosa“ (1965), “O Encoberto” (1969), “Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente” (1981) e “A Pécora” (1967) são algumas das peças de Natália levadas a cena.

Na área do ensaio publicou, entre outros títulos, “A Questão Académica de 1907" (1962), “Uma Estátua para Herodes” (1974), “Notas para uma Introdução às Cantigas de Escárnio e de Mal-Dizer Galego-Portuguesas” (1982) e “Somos Todos Hispanos” (2003).

No romance destacam-se títulos como “Anoiteceu no Bairro" (1946), reeditado em 2004, “A Madona” (1968), reeditado em 2000, e “As Núpcias” (1992).

Paralelamente, Natália gravou discos declamando poesia. É o caso de “Cantigas d’Amigos” (1971), com Amália Rodrigues e o poeta José Carlos Ary dos Santos, e “Improviso”, com o pianista António Victorino d’Almeida.

Fez também carreira na política. Anti-fascista, antes da Revolução dos Cravos estivera na oposição à ditadura do Estado Novo liderada por Oliveira Salazar e, depois, Marcello Caetano, com ação no Movimento de Unidade Democrática (MUD) e na Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (CEUD).

Com a democracia instituída foi deputada à Assembleia da República, em 1980, pelo PSD e, posteriormente, pelo Partido Renovador Democrático (PRD), como independente, de 1987 a 1991.

Natália Correia morreu aos 69 anos, a 16 de março de 1993, em Lisboa, cidade onde residia desde os 11 anos.