Valete foi convidado para trabalhar com uma turma da Escola Básica (EB) 2,3 Pintor Almada Negreiros para “produzir alguma reflexão sobre o que é a vida destes alunos na Europa”, explicou à Lusa Alfredo Martins, um dos curadores da programação “Liquid Becomings”, o tema da bienal artística The European Pavillion 2024.

“O dia-a-dia, a relação deles com o país, o bairro onde vivem, esta escola. Esta zona da cidade, a mais oriental, é uma zona muitas vezes esquecida, muito longe do centro e da ‘movida’ turística. Pareceu-nos importante trazer estas pessoas para a discussão do projeto”, referiu.

A EB 2,3 Pintor Almada Negreiros está situada entre o aeroporto de Lisboa e bairros municipais, numa zona “socialmente frágil, com as suas particularidades”, e uma grande diversidade cultural.

No espetáculo criado com Valete, “Putos di Kebrada”, os alunos irão apresentar duas canções, para as quais todos foram convocados a contribuir.

Para a letra da primeira, o rapper desafiou-os escreverem sobre o que estavam a sentir, “mas como se estivessem sozinhos”.

Valete lembrou-lhes que ninguém iria ler o que registassem, incitando-os a que escrevessem em palavras “o mais espiritual possível, o mais fundo da alma possível”.

Alguns “não conseguiram, ficaram na superficialidade”, mas outros “foram fundo” e escreveram sobre “depressão, vazio”.

Uma das alunas “falou da tensão que é viver no bairro dela”, situado em frente à escola, outros “falaram de violência policial”.

Valete considera que o meio em que esta escola está inserida influenciou as partilhas.

“Notas que muitas das respostas têm que ver com escassez. Acredito que alguns deles estão em lares disfuncionais, e isso vai traduzir-se nas respostas. Também se percebe que há uma questão difícil, que nesta turma tem sido bem trabalhada, que é a relação deles com a escola, que ainda é uma coisa difícil”, contou.

Para a criação da segunda música os alunos foram desafiados a partilhar o que pensam que a escola deveria ter e houve “todas as respostas possíveis”.

“Uns queriam mais dinheiro: ‘Queremos que a escola tenha dinheiro’. Alguns disseram que queriam um outro campo de futebol, salas maiores, ar condicionado. O David disse que queria mais disciplinas, gostava de ter espanhol, alemão”, partilhou Valete.

A experiência tem sido “espetacular” para o rapper, para quem o grande desafio passa por estar a trabalhar com uma turma onde nenhum dos alunos faz música.

“Estão a gravar pela primeira vez, a escrever rimas pela primeira vez, a ouvir-se pela primeira vez, e a preparar e a ensaiar um espetáculo pela primeira vez. Esse é o grande desafio”, referiu.

A Lusa assistiu a um dos ensaios, numa das salas de aulas da EB 2,3 Almada Negreiros e falou com alguns dos alunos, que partilharam como tem sido “muito bom para a turma” participar neste projeto.

“Estamos a gostar todos, a divertir-nos muito, a gostar de cantar. Rimos bastante. É muita experiência, está a ser fixe”, referiu Yasmin, que confessou não ser fã de rap nem saber quem era Valete até começar o projeto.

Yasmin contribuiu para a primeira música do projeto com o seu dia-a-dia: “escrevi ‘bairro e confusão, perturbação’”.

Já Paulo decidiu deixar um conselho: “devemos ajudar e não julgar, assim longe vais chegar”.

Paulo é o único da turma que pretende seguir música, para fazer teatro musical. Por isso terá no espetáculo um momento só seu, em que irá cantar duas versões de canções conhecidas, mas com o seu estilo que, segundo Valete, “é muito peculiar”.

O resultado do trabalho de Valete com os alunos é apresentado no sábado na escola, num espetáculo aberto a qualquer pessoa, como todas as atividades da programação de “Liquid Becomings”, a maioria das quais gratuitas.

“Algumas têm um bilhete, as que têm lotação mais limitada e aconselhamos a reservar”, referiu Alfredo Martins.

A programação acontece entre quinta-feira e sábado e é o culminar do projeto, que “no centro da proposta tem quatro viagens de barco, que acontecem em quatro rios europeus – Reno, Danúbio, Vístula e Tejo”.

As viagens são feitas “nuns barcos especiais, uma espécie de barco-instalação que funcionam como uma residência artística, que explora o percurso destes quatro rios, que são cenários muito diferentes, Europas muito diferentes”.

A programação, a ser apresentada em espaços como o Clube Oriental de Lisboa, a Biblioteca de Marvila e a Quinta Alegre, inclui propostas e partilhas das tripulações dos quatro barcos-instalação, criadas a partir de “materiais que recolheram e produziram” ao longo das viagens.

Concertos, audio-caminhadas, exposições, atuações de DJ, visitas aos barcos e conversas compõem a programação, na qual se destaca a apresentação de um texto inédito do escritor Gonçalo M. Tavares, “Fábulas da Maldade para uma Europa Líquida”.

O texto será lido pela atriz Tita Maravilha com a performance visual da autoria da artista Adriana Proganó, no sábado na Biblioteca de Marvila.