"Mário", um monólogo de Fernando Heitor, que conta, em forma de ficção, a vida de Valentim de Barros, bailarino homossexual perseguido pela ditadura, estreia-se hoje, no Cinema São Jorge, em Lisboa, numa interpretação de Flávio Gil.
A peça "Mário - História de um Bailarino no Estado Novo", que Fernando Heitor também encena, resulta da investigação à época e aos testemunhos sobre Valentim de Barros, o bailarino que viveu internado no Hospital Miguel Bombarda, durante mais de 40 anos, por um único motivo, a homossexualidade assumida.
Valentim teve aulas de dança clássica no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, estudou com a professora alemã Ruth Aswin, foi bailarino em Barcelona, Berlim e na ópera de Estugarda, na década de 1930, e viveu a ascensão nazi na Alemanha, de onde foi expulso pouco antes da eclosão da II Guerra Mundial, em 1939.
No regresso a Portugal, foi preso pela polícia política da ditadura, sujeito a uma lobotomia, a eletrochoques e internado no Hospital Miguel Bombarda, onde permaneceu, diagnosticado com "psicopatia homossexual e pederastia passiva", desde 1940 até à morte, aos 69 anos, em 1986.
A sua história foi recuperada pelo investigador António Fernando Cascais, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, que a analisa, através de diferentes fontes, em "Onde eu não dance, a solidão fá-lo por mim: Valentim de Barros", um dos ensaios do livro "Hospital Miguel Bombarda 1968", com fotografias do médico José Fontes, publicado pela Documenta/Sistema Solar, em 2016.
Cascais, que reconhece a necessidade de uma "abordagem de fundo" da biografia de Valentim de Barros, pensa aqui o percurso do bailarino, assim como o contexto em que se desenrola e a perceção que dele é assumida, com base em documentos disponíveis, que vão do processo da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), antecessora da PIDE, a entrevistas realizadas em momentos distintos da sua vida.
Destas, António Fernando Cascais analisa em particular a entrevista/reportagem feita em 1968, para o Diário de Lisboa, pelo jornalista Luís de Oliveira Nunes, especialista em temas culturais e bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, "que transmite o estereótipo completo do homem efeminado", sem jamais escrever a palavra "homossexualidade" (em plena ditadura), e aquela que Maria João Avillez viria a fazer para o Expresso, 12 anos mais tarde, em 1980, traduzida numa abordagem ética que reconhece "a personagem", não o doente, o "caso social" e não mental, o homem que era "mais memória do que vida".
A sequência cronológica destes textos, escreve Cascais, a que junta o testemunho do jornalista João Leal do Zêzere, que também esteve internado no Miguel Bombarda, em 1953, "não só regista o decurso da vida de Valentim, como possui o imenso valor adicional de patentear a evolução das atitudes sociais, relativamente à homossexualidade".
De textos mais recentes, destaca Fernando Cascais a reportagem “O Estado Novo dizia que não havia homossexuais, mas perseguia-os”, da jornalista São José Almeida, no jornal Público de 17 de julho de 2009 (que viria a expandir-se para o livro "Homossexuais no Estado Novo", em 2010), e a biografia "Valentim de Barros, o bailarino a quem roubaram a vida", assinada pelo jornalista Bruno Horta, publicada em "capítulos" pelo portal Sapo, em fevereiro de 2014.
O investigador recorda ainda o tom "não isento de crueldade" com que António Lobo Antunes descreveu Valentim de Barros, no seu terceiro romance, "Conhecimento do Inferno" (1980), num retrato que considera tão "deplorável" como o de Leal do Zêzere, no livro "No Mundo do Delírio e da Alucinação" (1955).
"Toda a vida de Valentim foi devassada até ao mais ínfimo pormenor para explicar essa homossexualidade que passou a ser ele próprio, para preencher com a matéria-prima da sua biografia, o sentido e a substância de uma palavra de outro modo vazia de conteúdo e de gente", escreve Cascais.
E, no entanto, "do punhado de internados famosos no Hospital Miguel Bombarda, Valentim de Barros é aquele de quem mais há ainda por saber, porque menos segredos teriam as biografias dos outros (...) e muito se deixa [apenas] adivinhar sob as descrições, relatos e entrevistas que restituem a sua história", escreve Fernando Casais.
Para o professor universitário e investigador, o que se sabe basta, porém, para colocar Valentim "na posição de vítima histórica", e para lhe reconhecer em simultâneo a incapacidade de converter essa consciência da vitimização, "num discurso político consequente".
Colocando Valentim de Barros "na posição inicial a partir da qual se desencadeia o movimento que leva da vergonha ao orgulho" e à construção da identidade, Cascais fala por fim da importância do seu caso e da "sabedoria feroz" que este impõe e "nos impede de esquecer".
Em 2013, o Pavilhão 31 do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa montou a exposição evocativa "O Bailado de Valentim de Barros". Quatro anos mais tarde, em 2017, a gala Abraço homenageou-o e, no ano passado, o duo Fado Bicha, de Lila Fadista e João Caçador, dedicou-lhe um fado.
"Mário - História de um Bailarino no Estado Novo" leva agora a história de Valentim de Barros para o palco da sala 2 do Cinema São Jorge, onde vai ficar em cena até 01 de setembro.
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