A partir do conto homónimo de Mário de Sá-Carneiro, esta ópera de câmara com música e libreto do compositor António Chagas Rosa traz também para o palco o fascínio do sonho, já que é este que delineia e guia os homens na sua existência, tanto a nível individual como social.

Num cenário de um café modernista, desconstruído em termos alegóricos por sete painéis - tantos quantas as cenas em que António Chagas Rosa dividiu a ópera – de imagens preexistentes de arte nova, dois ´garçons`, um narrador e uma espécie de ´dandy`, o Homem dos Sonhos, o alter-ego do poeta, no seu ‘smoking’ modernista e de gola romântica, compõem as personagens da ópera.

O narrador e o homem não diferem muito no vestir, embora este seja mais requintado do que aquele.

Até porque o que está em causa no conto homónimo de Mário de Sá-Carneiro, como na ópera, é a duplicação e a rarefação da imagem bem como os vários estados de alma de uma pessoa, disse o encenador Miguel Loureiro.

“Eu dominei os sonhos. Sonho o que quero. Vivo o que quero”, diz o Homem dos Sonhos, que conseguiu alcançar a felicidade suprema ao transpor a barreira do sonho.

À medida que a ação avança, o café modernista vai dando lugar a uma pista de dança, ao mesmo tempo que vão passando imagens de objetos ou imagens de cafés famosos em paredes que fragmentam o espaço e que vão também fechando o espaço à medida que o Homem dos Sonhos com os seus relatos vai exaurindo o narrador.

Sem introduzir palavras novas, António Chagas Rosa disse ter definido as duas personagens da ópera – Narrador e Homem dos sonhos – a partir das duas personagens que figuravam no conto.

“Para mim, tanto um como outro são emanações de Mário de Sá-Carneiro”, disse. “São como se fossem dois avatares e achei interessante que o Homem dos Sonhos fosse interpretado por uma mulher porque acho que não estou a falsear, digamos, a alma feminina de Mário de Sá-Carneiro”.

Além disso, foi a soprano Catarina Molder, que interpreta o Homem dos Sonhos, quem teve a ideia de pôr o conto em palco em forma de ópera, pelo que as duas personagens “fornecem o contraponto ideal em palco”, frisou.

E ainda que um personagem seja dominante e outro passivo, são os dois “prolongamentos da personalidade de Mário de Sá-Carneiro” e é “como se não existissem um sem o outro, pois precisam de se complementar”.

Num espetáculo em que há várias frases repetidas, “para que haja uma perceção clara da mensagem”, o “Homem dos Sonhos” põe o espectador num ponto de fuga permanente para outro plano.

“Portanto, eu acho que esta história é bastante premonitória de uma forma de estar que é o não-estar”, sublinhou António Chagas Rosa, socorrendo-se da frase de Oscar Wilde - “a maioria das pessoas são outras pessoas”, numa tradução livre -, para justificar a declaração.

“Nós nunca somos nós. Estamos sempre ou através da moda, ou através dos jogos ou através de qualquer estupefaciente ou através de qualquer programa político ou religioso num precipício em direção a ser ‘other people’”, enfatizou.

Já para a soprano Catarina Molder, “O Homem dos Sonhos” “transmite a psique do ser humano”.

“Porque embora a obra seja super-artificial, ela reproduz, literalmente, como o nosso pensamento interno se constrói. Nós somos obsessivos, nós estamos a pensar a mesma frase 300 mil vezes por dia. Obsessivamente, às vezes uma frase, um sentimento ou uma ideia que nos acompanha a vida inteira, não é uma hora, não é um dia, é a vida inteira”, sublinhou.

Razão por que, para a cantora que dá corpo ao Homem dos sonhos, a ópera retrata a condição humana em tudo: “na nossa eterna insatisfação e no sonho como a nossa materialização. No fundo, tudo o que há já foi sonhado, é a sensação que dá, seja em que plano for. Seja no plano das coisas mais simples, nas coisas mais grandiosas, no privado, no público”.

“O Homem dos sonhos” em versão ópera tem, porém, um final diferente do conto de Mário de Sá Carneiro. Enquanto no conto há um final em “espécie de diminuendo e uma perda de dinâmica”, segundo António Chagas Rosa, na ópera o compositor optou por um final “abrupto”.

Com cenografia de André Guedes, figurino de João Telmo e desenho de luz de Daniel Worm, “O Homem dos Sonhos” vai estar em cena na sala Luis Miguel Cintra do Teatro São Luiz de 4 a 6 de fevereiro, com sessões à sexta e sábado, às 20h00, e, ao domingo, às 17h30.

Com direção musical de Jan Wiezba, a ópera tem interpretação do barítono Christian Luján (Narrador) e Vasco Santos e Pedro Santos como ´garçons`.

A produção é da Ópera do Castelo e no ‘ensemble’ vão estar Pedro Vieira de Almeida ou Dana Radu (piano), Daniel Bolito (violino), Ângela Carneiro (violoncelo), Miguel Costa (clarinete), Miguel Polido (saxofone), Hugo Pedrosa (trombone), João Aibeo (tuba) Fernando Brites (acordeão), Samuel Pedro (contrabaixo) e Cristiano Rios (percussão).