Em 1973, editora Arcádia projetou a publicação de uma biografia de Amália Rodrigues, na época a mais internacional cantora portuguesa, e encarregou do projeto o escritor Manuel da Fonseca (1911-1993), autor de "Cerromaior" e "Seara de Vento", nome de referência no neorrealismo literário português.

A ideia parecia genial - pôr um escritor famoso, com uma militância comunista firmada, a traçar o perfil daquela que era então considerada o ícone do Fado e vista como um dos 'pilares' da propaganda da ditadura.

A biografia, porém, não foi avante, por várias razões. Alguns meses depois, em 1974, aconteceu o 25 de Abril, as prioridades de Manuel da Fonseca eram outras, e a própria Amália, refere-o o musicólogo Rui Viera Nery no prefácio, sofreu um "choque psicológico e emocional tremendo" face à "súbita hostilidade com que se deparou".

No final das entrevistas, o escritor considerou que não tinha material para escrever a biografia e disse mesmo que Amália não lhe deu nada. "Você quase não deu nada, fugiu sempre", disse Manuel da Fonseca à fadista.

Mas, na verdade, "Amália deu imenso", contrapôs Pedro Castanheira, para quem Manuel da Fonseca tinha a ideia de "algo paralelo que não uma biografia", referindo que a "carreira de Amália era já, só por si, muito".

Nessa longa conversa-entrevista com Manuel da Fonseca, a fadista falou de temas de que nunca tinha falado até à data, como a tentativa de suicídio na juventude.

Como realça o musicólogo Rui Vieira Nery, no prefácio do livro, agora publicado pela Porto Editora, em parceria com as Edições Nelson de Matos, este foi um depoimento extenso e aprofundado, como Amália só voltou a fazer na década de 1980, nas celebres gravações do historiador Vítor Pavão dos Santos, que deu origem à obra "Amália: Uma biografia" (1987).

Pedro Castanheira disse à Lusa que "Manuel da Fonseca nunca se despiu da pele do romancista e do poeta, para enveredar pela do jornalista, mas ganhou-se um conhecimento mais pessoal de Amália, como as suas escolhas literárias".

Castanheira salientou a "empatia" criada entre Amália e Manuel da Fonseca, que gostava de fado e tinha idênticas memórias de infância.

"Nestas conversas, surge-nos uma Amália que nunca perdeu a capacidade de se maravilhar, o que acho fantástico", realçou Pedro Castanheira.

Além do mais, "o ambiente entre Amália e Manuel da Fonseca foi sempre cordial e amistoso". "Da parte dela havia o interesse em conhecê-lo e criar, até, uma relação mais próxima. Muitas vezes é Amália quem objetiva as perguntas", disse Castanheira.

"As entrevistas cimentaram uma amizade e admiração mútuas, que terá perdurado apesar das diferenças entre os dois, algumas que se notam nestas conversas" disse Castanheira.

"Manuel da Fonseca não encontrou um fio condutor, e talvez lhe tenha faltado a objetividade do jornalista", disse Castanheira à Lusa, sobre as longas conversas entre ambos.

"A entrevista com Manuel da Fonseca, que agora se edita, tem características muito diferentes, apesar de não se poder dizer que, na sua essência, alguma vez chegue a contradizer propriamente o depoimento de 1985-86", dado a Pavão dos Santos, sublinha Nery, que conviveu com a fadista.

Na opinião do musicólogo, uma das mais valias da obra é "termos as perguntas" do entrevistador, reconhecendo-se, na conversa, um "itinerário por vezes quase errático de um diálogo informal, com saltos cronológicos, mudanças de tema, associações imprevistas, pontos mortos ou simplesmente graças ocasionais trocadas" entre a fadista e o autor de "O Fogo e as Cinzas" e "Um Anjo no Trapézio".

Rui Vieira Nery, filho do guitarrista Raul Nery, que várias vezes acompanhou Amália, acrescenta que conhece "bem a maneira como Amália gostava de deixar fluir a conversa".

Outra personagem que está presente nestas conversas, e intervém, é João Belchior Viegas (1926-2004), agente artístico de Amália, "homem inteligente e de grande Cultura", que colaborou com a revista literária "Távola Redonda", assinalou Castanheira.

"Belchior é um amigo muito próximo e, de certa forma, um honesto protetor de Amália. Mas também a chama à atenção da sua importância", disse à Lusa Pedro Castanheira.

Surgem outras intervenientes, designadamente, a atriz Maria Luísa Saldanha, uma das irmãs de Amália, Maria Odete Rodrigues, e uma amiga da fadista, Maria Amélia Passanha Guedes.

As entrevistas - três - decorreram em 1973, uma delas na casa de Amália, em Lisboa, na rua de S. Bento, as outras no Alentejo, no Brejão, onde a fadista tinha um terreno.

O projeto da biografia era da Editora Arcádia que a encomendou a Manuel da Fonseca, que foi pago pelas entrevistas, mas nunca desenvolveu a biografia.

As bobinas com cerca de dez horas de conversa foram guardadas por Natália Pires, da Arcádia, com o fito de as transcrever, e uma segunda cópia, já em cassete ficou na posse do editor Nelson de Matos.

Em 1973, a Arcádia pertencia ao extinto grupo CUF, que viria a ser nacionalizado. Nelson de Matos ocuparia então os cargos de editor e administrador, da editora, de 1974 a 1976, antecedendo o seu trabalho na Moraes Editores (1976-1980) e a sua permanência nas Publicações Dom Quixote (1981-2005), de que foi editor e proprietário, ao longo de mais de 20 anos. Em 2007 criou as Edições Nelson de Matos.

Em 2017, com o centenário do nascimento de Amália em perspetiva, que se assinala este ano, Nelson de Matos propôs à Porto Editora uma coedição do livro, a partir do texto transcrito e fixado por Pedro Castanheira.

A obra inclui 307 notas, esclarecendo assuntos focados na conversa, assim como sobre pessoas, das quais traça um perfil biográfico, como Belchior Viegas ou Adolfo Correia da Rocha, o poeta Miguel Torga, de que Amália afirma gostar, ou organizações como a Falange Espanhola e o Museu do Louvre, além de outros esclarecimentos de locais e de época.