![Escritor Kamel Daoud, vencedor do prémio Goncourt, vai a tribunal por alegada apropriação de história real](/assets/img/blank.png)
O escritor franco-argelino Kamel Daoud, que ganhou o prémio Goncourt no ano passado pelo seu romance “Houris”, foi processado por uma compatriota, Saâda Arbane, que o acusa de se ter apropriado da história da vida dela para escrever a sua obra.
A primeira audiência por “violação de privacidade” acontecerá em 7 de maio num tribunal de Paris, disseram fontes próximas do caso à agência France-Presse (AFP).
A notificação judicial foi entregue ao escritor na quinta-feira, enquanto apresentava o seu livro a leitores em Bordéus, assim como à sua editora, a Gallimard.
Procurada pela AFP, a editora recusou-se a comentar o caso.
“Houris” venceu a 4 de novembro o mais prestigiado da literatura francesa. No entanto, o livro não pôde ser publicado na Argélia, onde está sujeito a uma lei que proíbe obras sobre a "década negra" (1992-2002), que provocou pelo menos 200 mil mortes, segundo números oficiais.
As 'Houris' do título do romance são, na tradição islâmica, jovens mulheres de grande beleza que aguardam os homens crentes no paraíso.
O romance de Kamel Daoud passa-se principalmente em Orão (Argélia) e conta a história de Aube, uma jovem grávida que conta à filha por nascer o massacre da sua família, a 31 de dezembro de 1999, por islamitas que tentaram cortar-lhe a garganta, deixando-a desfigurada e muda.
Saâda Arbane afirmou em meados de novembro ao canal argelino One TV que a personagem de Aube foi inspirada na sua história.
A mulher sobreviveu a uma tentativa dos jihadistas de cortar a sua garganta em 2000 e, desde então, usa uma cânula [tubo] para respirar e falar.
Kamel Daoud conheceu-a quando ela era paciente da sua esposa, Aicha Dehdouh, uma psiquiatra, entre 2015 e 2023.
Saâda Arbane, que já processou o escritor na Argélia, pede 200 mil euros de indemnização no seu processo em Paris, bem como a divulgação pública de uma possível condenação, pois considera “totalmente impensável” que a semelhança seja fruto do acaso.
A autora da queixa não queria que a sua história fosse tornada pública e “nunca consentiu que fosse usada pelo senhor Daoud”, insiste o processo, “apesar de três pedidos”, diz o texto.
Pelo contrário, Saâda Arbane estava “determinada a que, em nenhuma circunstância, esta história, tão singular, íntima e única, fosse usada por alguém”, especialmente porque isso poderia expo-la a um processo criminal na Argélia.
O processo cita uma entrevista com o escritor, publicada em setembro no semanário L'Obs, na qual foi questionado se o seu livro foi inspirado numa mulher real.
Kamel Daoud respondeu: “Sim, conheci uma mulher com uma cânula (...) Ela foi a verdadeira ‘metaforização’ desta história”.
Crítico do islamismo radical, o que lhe valeu uma ‘fatwa’ no seu país de nascimento (Argélia), o escritor há ganhara em 2015 o Prémio Goncourt de Melhor Primeiro Romance, com “Meursault, contra-investigação”, o seu único livro publicado em Portugal (Teodolito), obra que escreveu como uma resposta a “O Estrangeiro”, de Albert Camus.
Em dezembro, afirmou serem “completamente falsas” e resultado de manipulação as acusações de ter usado a história verídica de uma vítima da guerra civil argelina.
“Essa jovem mulher infeliz afirma que é a sua história. Se consigo compreender a tragédia dela, a minha resposta é clara: isso é completamente falso”, escreveu numa crónica no semanário Le Point, com o qual colabora regularmente.
“Para além da ferida aparente, não há nada em comum entre o drama insuportável desta mulher e a personagem Aube. A ferida não é única. Infelizmente, é partilhada por muitas outras vítimas. É visível. É a de centenas de pessoas”, acrescentou, acusando a queixosa de ser “manipulada com o objetivo de atingir um objetivo: destruir um escritor (e) difamar a sua família”.
Antes, a sua editora já tinha denunciado “as violentas campanhas difamatórias orquestradas [contra o escritor] por certos meios de comunicação próximos de um regime cuja natureza é bem conhecida”.
“‘Houris’ é uma obra de ficção, não é uma biografia. É a história trágica de um povo. [...] ‘Houris’ não revela nenhum segredo médico. A cânula [para respirar e falar], a cicatriz e as tatuagens não são segredos médicos, e a vida dessa mulher não é um segredo, como provam os seus próprios testemunhos. Basta ler o romance para perceber que não há qualquer ligação, a não ser a tragédia de um país”, afirmou o autor, defendendo também a sua mulher, cujo “nome foi manchado pela difamação e pela mentira”.
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