No 1.° de junho de 2023 prometiam-se apenas festejos. O Dia da Criança e o início das festividades dos Santos Populares propiciavam rara oportunidade para que Todos Juntos, ansiosos pela chegada do verão, a contemplarem "Mar e Lua" ao som do "Passaredo" no confortante prenúncio do arranque de um "Bom Tempo" e de alegria e paz "Paratodos".

Parece, mas não foi um despretensioso alinhamento, o do concerto de Chico Buarque, em Lisboa. A conclamação à luta entoada pela cantora Mônica Salmaso que com estas canções abriu o concerto, deu entrada à atual digressão do músico brasileiro (intitulada "Que tal um samba?") em um Campo Pequeno lotado.

“Todos juntos somos fortes
Somos flecha e somos arco
Todos nós no mesmo barco
Não há nada pra temer
Ao meu lado há um amigo
Que é preciso proteger
Todos juntos somos fortes
Não há nada pra temer”

Este excerto de "Todos Juntos", da peça Os Saltimbancos (de 1977), que numa primeira impressão soa como uma singela homenagem às crianças, rapidamente foi percebida pelo público como um lembrete de que o povo, ao se unir, até o mais valente dos valentes o vai respeitar.

O "Passaredo" (em alusão à música homónima) lembra-nos que não se pode normalizar a existência de projetos e partidos fascistas numa democracia.

“Bico calado
Toma cuidado
Que o homem vem aí
O homem vem aí
O homem vem aí”

Veja as fotos do concerto:

Expressão política

Quem conhece Chico Buarque sabe que ele não é somente um cantor. É pura expressão política em forma musicada e poética. No seu repertório amplo constam inúmeras perseguições e críticas.

Buarque foi alvo durante o período da ditadura militar no Brasil, o que o obrigou ao exílio em 1969, na Itália. Os gritos de Chico pela democracia ecoaram e ainda ecoam. Quem esteve no Campo Pequeno na noite de quinta-feira, ouviu-o claramente.

Sob efusivos aplausos, o poeta incansável juntou-se a Mônica Salmaso no palco como um companheiro que se junta a outro na luta. Com ela cantou "O Velho Francisco", "Sinhá", "Sem Fantasia", "Biscate" e "Imagina".

O espetáculo seguiu com composições de várias fases e álbuns da carreira de Buarque. Via-se um público que parecia hipnotizado, sem saber se cantava as músicas com o cantor ou se apenas apreciava atentamente a sua voz.

Entre as músicas apresentadas ouviram-se temas como "Bastidores", "Injuriado", "Futuros Amantes", "Todo o Sentimento", "O Meu Guri" e outras que, para todo o "Chicólatra" - alcunha carinhosamente atribuída ao fã de Chico - são considerados clássicos.

Afasta de mim esse cálice

Originário de uma família abastada, Chico Buarque foi desde cedo submetido à educação de qualidade e à politização. Além de um músico notável, desenvolveu uma brilhante carreira literária e é autor de diversos romances e peças teatrais.

A grande maioria das obras apresentadas pelo músico, sejam de sua autoria, sejam de outros compositores, explica-se, como qualquer poesia, sob pontos de vista diversos e várias interpretações. São trabalhos que compreendem e incomodam estruturas conservadoras. Por isso, o artista é frequentemente alvo de ataques e campanhas de difamação que se dissolvem facilmente diante da dimensão e do alcance da sua importância histórica.

Prémio Camões

O ex-presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, recusou-se a assinar o diploma do Prémio Camões, atribuído em 2019 ao músico, compositor e escritor brasileiro. Atitude que naquela altura o artista considerou como um segunda prémio.

Em abril deste ano, Lula da Silva, o atual presidente brasileiro, finalmente entregou o título durante a cerimónia no Palácio de Queluz, em Sintra. Esteviram ainda presentes ainda o Presidente de Portugal Marcelo Rebelo de Sousa, o primeiro-ministro António Costa e a ministra da Cultura do Brasil, Margareth Menezes. Na ocasião, Chico reforçou a mensagem:

“Conforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prémio Camões, deixando espaço para a assinatura do nosso presidente Lula”, disse.

“Carlos Paredes? quem me dera!”

À plateia, Chico revelou esquecer-se algumas vezes de certas partes das próprias músicas. Provocado pelos membros da banda, que o compararam a alguns nomes da cena musical mundial, como Jimmy Hendrix e Carlos Paredes, o cantor despertou euforia do público ao reagir: “comparar-me com Carlos Paredes? Quem me dera!”, e recordou que “errar a letra” pode ressuscitar uma outra famosa campanha feita contra ele, que diz que o cantor compra as letras de suas músicas a terceiros.

A fake news é fruto de um trecho descontextualizado, extraído do documentário Desconstrução (2016), no qual Chico, de forma irónica, afirma comprar letras de um homem chamado Ahmed. No vídeo, aos risos, o cantor “confessa”:

"O nome dele é Ahmed. E Ahmed tem o seguinte: ele me fez assinar uma cláusula que não pode mexer na harmonia dele. (...) Esses caras me abordam na rua e vão vendendo músicas para mim. E eu vou comprando. Geralmente eu compro dos mesmos que já conheço há mais tempo. Aí quando é hora de gravar o disco eu ligo: 'Tem samba bom pra vender, tem uma canção, tem não sei o quê? Alguma novidade? Eu tenho uns oito ou nove compositores habituais. São compositores anônimos. Estão por aí e o meu trabalho é buscar."

Nesta altura do concerto Chico novamente ironiza: “essas coisas da internet (...) estou acostumado, já me xingaram disso, daquilo, de esquerda caviar… Já não me chateio mais. Agora dizer que eu compro música, isso eu não vou admitir, eu não compro música.”. E emenda com um refrão de ‘Bancarrota Blues’: “Mas posso vender, quem vai arrematar?”.

Que tal um Samba?

Com a música que dá nome a esta digressão em Portugal (que se encerra a 03 de junho), Chico dá o recado final, como quem convida o povo açoitado pelo seu notório desafeto a respirar ares de mudança e não descuidar da luta. Para isso, "Que tal um Samba?":

“Desmantelar a força bruta
Então que tal puxar um samba
Puxar um samba legal
Puxar um samba porreta
Depois de tanta mutreta
Depois de tanta cascata
Depois de tanta derrota
Depois de tanta demência
E uma dor filha da puta, que tal?
Puxar um samba
Que tal um samba?
Um samba”

Este seria o último tema, ou palavra de ordem do alinhamento desta primeira atuação em Lisboa. Porém, Chico e banda foram generosos no tradicional encore e novamente, ao lado de Mônica Salmaso, brindaram o público com outras quatro canções. A primeira delas, "Maninha", Chico compôs em memória da sua irmã, Miúcha, a quem, emocionado, a dedicou.

"Noite dos Mascarados", "João e Maria" e "Tanto Mar" encerraram a noite que, sem deixar de ser festiva, serviu para nos lembrar que arte e política são indissociáveis.

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