Ganhou quatro prémios no Festival de Veneza: o Leão de Futuro, de primeira obra, o prémio especial do júri da secção Horizontes, o e duas distinções paralelas, 'Bisato d'Oro' e Sorriso Diverso Veneza. “Listen” é um filme de uma tremenda força de resistência contra um sistema que nos deixa desarmados.

Em estreia esta quinta-feira (22) nos cinemas portugueses e protagonizado por Lúcia Moniz e Ruben Garcia, a primeira longa-metragem da também atriz Ana Rocha de Sousa inspira-se numa história verídica, o drama de uma família portuguesa que tenta a sua sorte nas margens de Londres, onde o seu quotidiano é uma luta constante.

Só que uma nova batalha é adicionada a esta mesma equação. Numa decisão questionável, mas “comum” no panorama inglês, a segurança social retira as crianças a este casal, iniciando assim um processo de adoção forçado que, na pior das hipóteses, deixará os progenitores sem encontrar o rasto dos seus rebentos.

“Listen” prova ser um filme-denúncia de uma realidade cruel mas, acima de tudo, é uma obra de garra e de emoção à flor da pele. O SAPO Mag conversou com a realizadora sobre este feito, desde as suas influências até às "guerras" em que o filme se encontra involuntariamente envolvido. Neste último ponto, Ana Rocha tem um recado a dar.

Começo com a pergunta básica: de onde veio a iniciativa para elaborar esta história?

A ideia surgiu de uma notícia que veio a público em 2016, na qual retiravam de uma mãe, um bebé com somente dias. Não estava a acreditar nessa história e, como tal, iniciei uma investigação para perceber como é possível e o porquê de tal procedimento. Tive conhecimento de mais casos, descortinando-se todo um universo perante mim, o que me deixou impressionada, horrorizada e sensibilizada. Principalmente tendo em conta que muitos destes casos envolviam família portuguesas, fatores que me levaram a escrever este filme. Confesso que tive alguma resistência em iniciar a escrita. O meu primeiro impacto com este assunto foi muito agressivo para mim. Estava incrédula.

Pelo que me está a dizer, isto só acontece maioritariamente a famílias “estrangeiras”?

Também acontece a outras famílias, porém, a grande percentagem é estrangeira. Isso é associável a uma classe baixa, impedida de possuir meios para se defender deste sistema. Para além disso, era necessário as pessoas estarem informadas porque o processo de sinalização/investigação tem procedimentos muito assustadores. Não quero afirmar com isto que só acontece a famílias estrangeiras que vivem em grandes dificuldades. Existem também famílias inglesas que passam por este pesadelo, só que muitas delas conseguem, e com maior facilidade, um responsável pela guarda/custódia. Muitos deles escolhidos dentro da própria família.

É óbvio que a escolha de uma família portuguesa para protagonizar e especificar este caso é uma forma de nos identificarmos facilmente com os dramas destas personagens.

Sim, é uma perspetiva portuguesa desta temática. É uma família ficcionada, mas tem como base a realidade comum de diversas famílias. Mas pretendia um ponto de vista português porque sou portuguesa e vivi na Inglaterra e queria trazer a este caso um choque cultural que levasse ainda a mais conflitos, falhas de comunicação ou equívocos com maior facilidade. Queria demonstrar os obstáculos em bruto de que estas famílias sofrem com este cruel procedimento.

VEJA O TRAILER DE "LISTEN".

Queria que me falasse sobre a escolha de Lúcia Moniz para protagonizar este drama vincado no seu realismo. Sendo ela uma atriz reconhecida pelo grande público.

A Lúcia foi sempre uma atriz de uma perspetiva e um espectro bastante amplo que possibilita uma variedade de personagens. Não tendo uma associação a papéis específicos, ela tem características que ajudam e muito em filmes como estes, em que é pretendido veracidade, transparência e verdade no seu desempenho. Para além de uma boa atriz, precisamos de alguém cuja personalidade não se sobreponha e que não se imponha ao papel. Por exemplo, se for ver um filme com o Brad Pitt demoro mais tempo a aceitar a personagem que ele me está a entregar. Com a Lúcia, mesmo sendo um nome com que todos estão familiarizados, sabia perfeitamente que embarcaríamos numa viagem. Porque ela mergulha e passa a ser definitivamente esta mulher.

“Listen” é um filme de poucos embelezamentos, dotado de realismo e direto no seu discurso e em certa parte, é uma obra com influências de um certo cinema britânico que o coloca num plano à parte dentro do panorama português. Queria que me falasse sobre as suas inspirações e referências.

É engraçado, porque muitos têm apontado referências que artisticamente não fazem parte das minhas inspirações. Faz-se, por exemplo, muita menção ao Ken Loach [cineasta conhecido por filmes de um forte pendor social e político como "O Meu Nome É Joe" e "Eu, Daniel Blake], e apesar de ter um enorme respeito pelo trabalho dele, não acredito que o tenha "citado" voluntariamente. Identifico-me mais com uma Nadine Labaki [a cineasta libanesa de "Caramel" e "Cafarnaum"]. Aliás, temos um paralelismo de sermos ambas atrizes que se colocaram atrás da câmara. Mas quanto a referências? Gosto bastante de cinema japonês, nomeadamente de [Hirokazu] Koreeda ["Ninguém Sabe", "Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões"], que mesmo sendo uma realidade diferente, julgo que “Listen” seria o resultado da sua tradução. Se calhar [risos]. Assim como Abbas Kiarostami ["Close Up", "O Sabor da Cereja"] ou o grego Theo Angelopoulos ["O Olhar de Ulisses", "A Eternidade e Um Dia"]. Quando uma pessoa tem referências, ou um grande amor pelo trabalho de um realizador, isso não implica que não esteja no filme de alguma maneira, mas que não seja óbvio. Mas tem graça de não ter a menor ideia de onde vem o Ken Loach à conversa. Quando trabalhava neste filme, o “Eu, Daniel Blake” já tinha estreado e mesmo hoje, ao vê-lo, não consigo associá-lo ao “Listen”.

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Possivelmente, essa associação surge do facto de ter estudado cinema numa escola de Londres.

Sim, acho que tem… O ensinamento que tive foi através de outras referências. Penso que está relacionado com toda uma escola britânica e não somente a obra de um realizador. E o que é forte nessa ligação, se é que existe, é automaticamente através da temática. Acredito que, se mostrarmos "Listen" ao Ken Loach — aliás, penso que tal já aconteceu —, dificilmente o ligaria à sua obra nem assumiria que alguém estaria pensar nos seus filmes ao fazer este. Ele é uma pessoa que vive na crueza profunda e eu não estou nessa “crueza profunda”. O filme é cru …

… e cruel?

A realidade é cruel, não é o meu filme que é cruel. E nisso o Ken Loach também faz, vai buscar a crueza e a crueldade e coloca-as lá, no seu cinema. Com isso sim, identifico-me, mas nesse aspeto é algo tão próprio de mim. Não posso fazer nada se a minha essência vai ao encontro disso. Fomos separados à nascença... ou não [risos].

Ana Rocha de Sousa premiada em Veneza

Desde o anúncio da presença no Festival de Veneza até às suas distinções, "Listen" e o seu nome têm sido utilizados como arma de arremesso numa guerra antiga no Cinema Português. Há quem a tenha desvalorizado como "a atriz dos ‘Riscos’" [série juvenil transmitida originalmente pela RTP entre 1997 e 1998] e quem agora se refira a si como “a atriz dos ‘Riscos' fez um filme que ganhou prémios em Veneza" e deu uma “bofetada de luva branca” a quem a criticou. Deixe-me, fazer uma salvaguarda, julgo que o seu filme merece mais do que todas estas guerras.

Pois, o problema aqui é que eu não sou a “atriz dos ‘Riscos’ que fez um filme”. Estou no meio, estou efetivamente no meio, e algo que não aprovo é que o meu nome seja utilizado para dizer mata nem para dizer esfola. Isto para dar a ideia que há dois lados profundamente errados nesta história. Um lado muito errado é aquele que olha para mim e diz algo do género “aquela miúda é a atriz dos ‘Riscos’", ponto final parágrafo. Esta pessoa, subentende-se, não tem capacidade de... ponto. O outro lado é algo como “ah, ah, ah, a atriz dos ‘Riscos’ pode e aconteceu”. Simplesmente, não! Há aqui um grande equívoco, mas isso deixou de ser uma guerra minha.

Mas não sente essa instrumentalização?

Não sei se este filme foi instrumentalizado para essa guerra. Sinto que era importante, de uma vez por todas, perceber que não sou apenas a miúda que se estreou nos "Riscos". Continuo a ser e continuarei a ser a miúda que sonhou ser atriz e se estreou nos "Riscos". Se voltasse atrás, faria exatamente o mesmo porque foi um percurso que me interessou e me preencheu durante muito tempo. Também não sou essa miúda que, do nada, decidiu fazer outras coisas e teve "uma sorte do caraças". Não, estudei imenso, trabalhei imenso. Há certamente muito que tenho para aprender... ótimo, temos todos. Retirar frases do contexto não fica bem e retirar uma pessoa que tem milhares de características ou milhares de linhas que são informativas, que são dados importantes, quer de um lado, quer d’outro, não me parece de todo bem. Por isso, situo-me no meio.

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