Ouça a crónica de Francisco Sena Santos

Humberto Delgado é uma lenda da oposição à ditadura de Salazar. Foi valente, herói e mártir. Mas começou a carreira de aviador militar como entusiasta do regime nacionalista do qual veio a ser, três décadas depois, um tão temido opositor que a polícia política o assassinou.

É um homem que aos 20 anos de idade, em 1926, cadete em Vendas Novas depois de ter sido um «menino da Luz» (aluno do Colégio Militar), logo aderiu ao movimento militar que derrubou a república parlamentar e instaurou a ditadura que veio a dar origem à revolução nacionalista de Salazar. Nesse tempo, Delgado estava com o «Deus, Pátria, Autoridade» de Salazar.

Em 1936 participou na criação da
Mocidade Portuguesa, organização juvenil do salazarismo inspirada nas juventudes hitlerianas. Apoiou os franquistas na guerra civil de Espanha. Coube-lhe depois conduzir as delicadas negociações secretas com os ingleses sobre a instalação de bases aliadas nos Açores, durante a
II Grande Guerra. Em 1951 este militar aviador continuava alinhado com o regime, tanto que foi designado para uma instituição do salazarismo, a Câmara Corporativa, e, logo depois, foi nomeado adido militar na embaixada de Portugal em Washington e representante português em comités da NATO. Em 1955 foi promovido a general e nomeado Diretor-Geral da Aeronáutica Civil.

Este percurso mostra três décadas de progressão dentro do regime. Mas o contacto com os britânicos no tempo da guerra e as longas estadas em serviço no Canadá e nos Estados Unidos levaram Delgado a evoluir politicamente, a tornar-se adepto da democracia parlamentar.

No final de 1957, num encontro com outro militar que tinha rompido com Salazar, Henrique Galvão, este incitou Humberto Delgado a apresentar-se como o candidato da oposição ao regime de Salazar nas eleições presidenciais de 1958. Delgado demorou três dias a decidir avançar. Há quem entre a oposição tenha manifestado reservas, porque Delgado não tinha um historial na oposição e os comunistas sabiam do seu anti-comunismo. Mas a notícia da candidatura de Delgado suscitou uma tal simpatia popular que toda a oposição aderiu à candidatura do «general sem medo». Houve nesse ano de 1958 uma espécie de magnetismo entre o povo e o general que mostrou carisma, inteligência e intuição política. Delgado conseguiu reunir multidões em comícios.

Há um momento da campanha presidencial de 1958 que marca o discurso político português. É a conferência de imprensa realizada em 10 de Maio de 1958 no café Chave de Ouro, no Rossio. Um jornalista francês perguntou-lhe, caso fosse eleito, o que faria ao presidente do Conselho, o dr. Salazar. Delgado respondeu com um
«obviamente demito-o», que inflamou toda a oposição.

Quatro dias depois a praça Carlos Alberto, no Porto, encheu-se com a multidão que aclamava o
«general sem medo».

O regime teve medo do general. Delgado tinha ganho a rua, conseguiu um estado que parecia de insurreição contra Salazar, mas não conseguiu vencer o aparelho do regime que manipulou as eleições e em 8 de Junho fez eleger Américo Tomás.

Humberto Delgado denunciou a fraude, proclamou-se o eleito do povo depois de uma retumbante campanha, mas o almirante Tomás é quem ficou o presidente corta-fitas nas inaugurações de Salazar. Delgado não cedeu e, emotivo, romântico, antes de ser assassinado cavalgou durante mais sete anos como líder da oposição a Salazar. É o tempo do sequestro do Santa Maria, assalto pioneiro da pirataria política. É o tempo da rebelião no quartel de Beja. É o tempo em que um avião da TAP foi usado para lançar panfletos sobre Lisboa.

É o tempo em que a União Indiana expulsa Portugal de Goa, Damão e Diu. É o tempo em que eclodiu a guerra colonial, em Angola, Moçambique e na Guiné.

Delgado tornara-se inimigo principal do regime e foi obrigado ao exílio, que suportou mal, com impaciência, como fica mostrado logo no início do filme de Bruno de Almeida.

Enquanto o general sem medo manobra para tentar um golpe que derrube Salazar,
a PIDE trata de armadilhar Delgado. A cilada fatal foi montada ao longo de três anos, com o envolvimento de agentes infiltrados que se faziam passar por amigos do general-herói.

No sábado, 13 de Fevereiro de 1965, Humberto Delgado e a sua secretária Arjaryr Campos foram mortos num solitário campo da Extremadura espanhola, a sul de Badajoz e a escassos três quilómetros da fronteira portuguesa. Tinham sido atraídos ali julgando que iam a um encontro com correligionários portugueses.

Durante várias semanas não se soube o que tinha acontecido ao «general sem medo». Começou por se julgar que estaria preso, foi dado como desaparecido, até que, mais de dois meses depois, dois pastores de Villanueva del Fresno deram com o cadáver. Quando ficou comprovado que Delgado tinha sido morto, o regime de Salazar tentou responsabilizar a oposição, tentou fazer passar que Delgado tinha sido vítima de ajustes de contas entre facções na oposição.

Foi preciso esperar pelo
25 de Abril para que o processo aos autênticos mandantes e assassinos fosse iniciado. O julgamento dos dez pides começou em 78 e a sentença só foi lida em 81. Houve então muita indignação popular pela brandura do tribunal militar com os autores morais e materiais deste crime político.