O filme “A Portuguesa”, que vai ser exibido hoje no Festival de Cinema de Berlim, “abre uma porta para a atualidade” e tem muito a ver com os dias de hoje, revela a realizadora Rita Azevedo Gomes.
A longa-metragem, que faz parte da secção Forum da 69.ª edição da Berlinale, é inspirado num conto de Robert Musil, com adaptação e diálogos de Agustina Bessa-Luís.
“Interessa-me que passe uma certa atualidade da nossa época para dentro de uma história que acontece num século muito antigo. […] Estamos perante uma história que tem muito a ver com os nossos dias. Não posso falar de umas pessoas que nem sei se existiram sem estar a falar das pessoas que estão ao meu lado e do que se passa hoje em dia”, sublinha a realizadora portuguesa.
A história está ambientada no século XVI, no norte de Itália, quando os von Ketten disputam as forças do Episcopado de Trento. Rita Azevedo Gomes admite que “mais do que uma preocupação”, puxar o filme para a atualidade acontece-lhe “naturalmente”.
“Estamos a filmar uma cena qualquer simulada com umas fatiotas, uns décors, com umas posturas, indicações, mas depois saímos dali, e vamos para o trânsito, vamos para o metro, é inevitável que eu tenha de abrir a porta para dentro do filme. A ideia da personagem da Ingrid Caven tem a ver com isso, abrir um rasgão. Acho que é mais interessante do que fazer um filme da época, bem feito, com uma veracidade suposta, porque não se sabe se é verdade ou não, nunca lá estive, é uma representação. Mas o que se passa nas pessoas, as lutas de poder, de religião, relações humanas, relações de homem mulher, permanecem semelhantes hoje em dia”, explica a realizadora.
A autora de “O Som da Terra a Tremer” (1990) e “Correspondências” (2016)marca presença pela primeira vez na Berlinale, “um grande festival”, como o qualificou.
“É sempre entusiasmante chegar a um festival que obviamente vai ser bom para o filme, assim espero. Pode abrir novas oportunidades para fazer outros filmes, o que é sempre bom. Mas é um bocadinho esmagador esta textura de glamour e mercado, é desconcertante. Ainda não consegui ver nenhum filme, é tudo um galope”, comenta, entre risos.
Ainda assim, Rita Azevedo Gomes lamenta o desequilíbrio entre os festivais e os cinemas: “Gostaria mais que as pessoas em vez de se inebriarem tanto com festivais fossem ao cinema, porque não vão. Em Lisboa passa-se isso, há multidões a afluírem aos festivais e depois há salas de cinema que têm cinco espectadores, há qualquer coisa que está invertida”.
Discípula de Oliveira? Não.
O filme “A Portuguesa” já foi descrito pela crítica como uma homenagem a Manoel de Oliveira e Rita Azevedo Gomes como sendo uma discípula, mas a realizadora portuguesa nega as comparações.
“Não. Sou discípula de Manoel de Oliveira como das pinturas, dos pintores e dos músicos. Com toda a admiração que eu tenho por ele, não me lembro dele nem dos filmes dele quando faço os meus filmes. Agora se por trás está isso… Gosto muito dos filmes dele e dele como pessoa. Mas realmente põem-me esse cunho, fico muito orgulhosa, mas não sinto assim”, responde.
Rita Azevedo Gomes confessa a dificuldade em fazer filmes que a levou até a ponderar desistir, justificando assim o tempo entre cada um dos seus trabalhos.
“Às vezes é difícil e há interregnos muito grandes, agora não tanto nestes últimos anos. Entre esse primeiro filme e o segundo estive dez anos parada. Não é fácil. Dá trabalho. Sobretudo não é fácil a expectativa, os concursos, enfim, as recusas e muitas vezes pensei que era talvez melhor não pensar mais nisso. Mas depois tinha de ir verificar e experimentar e lá consegui fazer o segundo. E nos últimos anos tem havido uma sequência mais ritmada, vamos ver se haverá outro [filme], tenho expectativa que sim, mas não depende só de nós”, comenta.
Equidade forçada nos festivais é um disparate total
A 69.ª edição da Berlinale é, de todas as realizadas até hoje, a que conta mais mulheres na realização.
“Ouvi isso ontem e disse: e então? Uma vez li um disparate enorme em Buenos Aires, no festival. Em cima da mesa do café estava um jornal que dizia que queriam mudar as regras e fazer equidade, dos programadores, do número de filmes de homens e de mulheres, dos elementos do júri. O que é isto? Porquê? É um disparate total. Quando se chega a um ponto em que se pensa que se vão ganhar certos valores e certas transformações com estas coisas. Penso que não é assim”, argumenta.
A forma de haver igual entre homens e mulheres no cinema é, segundo a realizadora, “fazendo filmes e persistindo”.
“Também sei o que é ser tratada com um certo paternalismo, uma certa condescendência, mesmo dentro da equipa. Quando isto começou, eu era a menina a realizar. Não era por maldade, mas era natural, havia uma diferença que inibe a possibilidade de fazer e é grave e uma estupidez também”, realça Rita Azevedo Gomes, frisando a necessidade de não desistir.
tuguesa” é o primeiro filme nacional a ser exibido nesta edição da Berlinale. Tem como intérpretes Clara Riedenstein, Marcello Urgeghe, Rita Durão, Pierre Léon, João Vicente, Manuela de Freitas, Adelaide Teixeira, Alexandre Alves Costa e Ingrid Caven.
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