O filme “Fordlandia Malaise”, de Susana de Sousa Dias, que se estreou na secção paralela Forum Expanded, da Berlinale, é uma “metáfora do Brasil de hoje”, sustenta a realizadora, acrescentando que “não podia ser mais atual”.
O filme compõe-se das memórias e do presente da Fordlandia, cidade fundada por Henry Ford na Amazónia, em 1928, um “empreendimento megalómano” que obrigou à destruição de parte da floresta.
“Foi a imposição do poder a uma zona, queimaram milhares de hectares de floresta e construíram uma vila americana. Claro que correu tudo mal e poucos anos depois já tinham abandonado o projeto. Mas aquilo foi permanecendo e as pessoas também. Agora encontramos os descendentes”, revela a realizadora, em declarações à agência Lusa.
Susana de Sousa Dias explica que o filme surgiu de um convite para uma residência artística feito por um coletivo francês, “Suspended Spaces”, que reflete sobre aquilo a que chamam “espaços suspensos”, que não cumpriram a função para o que foram edificados ou construídos.
Ansgar Schäfer, produtor do filme, sublinha que, tal como aconteceu com “48”, anterior documentário da realizadora, também “Fordlandia Malaise” é muito atual.
“Estamos a olhar para uma desflorestação da Amazónia que, no fundo, se vai repetir. Um dos programas do [Jair] Bolsonaro era este. Ele diz que ainda há muito mato para cortar. As pessoas que vivem lá [na Fordlandia] acham que, na altura, foi a natureza que se vingou. Agora vai acontecer a mesma coisa. Vão destruir a floresta, mas não vai conduzir a uma produção sustentada, vai roubar os recursos e depois deixar tudo 'desertado'”, sustenta o produtor da Kintop.
“Quando estava a ver o filme, vi uma metáfora do Brasil de hoje. O que é que vai acontecer? Temos essa questão da Amazónia, mas temos toda a aniquilação da cultura indígena. E encontramos ali um núcleo de pessoas que querem reclamar a sua própria identidade, mas com Bolsonaro e a situação atual vão ter ainda mais dificuldades”, acrescenta Susana de Sousa Dias à Lusa, referindo-se à ação do atual Presidente brasileiro.
A realizadora esteve apenas uma semana na Fordlandia, durante a qual conseguiu recolher todo o material para o filme.
“Sou muito caótica a trabalhar, mas ali fui muito organizada. Aquilo é fascinante, não só a história, mas as paisagens, as pessoas. Acordava às cinco da manhã, deitava-me à uma, dormi muito pouco. Fiquei cheia de músculos nas pernas e consegui trazer muito material. Muito rapidamente a ideia do filme surgiu, foi um ‘clique’ e todas as peças se encaixaram”, confessa.
“A minha ideia quando fui para lá era pensar na questão neocolonial. Quando comecei a ler sobre a Fordlandia percebi que aquilo era um mini sistema autoritário, é uma grande violência contra os trabalhadores. Interessava-me ver esta imposição do capitalismo à geografia, que ali é muito poderoso”, revela à Lusa, admitindo que se surpreendeu muito quando chegou.
“Cheguei e percebi que aquilo é uma vila e há pessoas que vivem lá e, mais interessante, que estão a tentar reescrever a sua história. Vemos uma espécie de criação de uma mitologia própria daquela zona, ou seja, eles estão a reescrever e a reapropriar-se dos mitos que foram esquecidos e perdidos”, sublinha.
Susana de Sousa Dias conta que durante a estadia na vila desenhada por Ford, falou com muitas pessoas de várias idades e áreas, tentando perceber também a perspetiva das mulheres, de quem pouco se falava nesta altura.
“Uma das primeiras pessoas com quem falei foi com o padre e ele disse-me que quando chegou lá, encontrou uma vila totalmente deprimida e explicou que, basicamente, a disposição da própria vila com as casas isoladas, muito classificadas, provoca um isolacionismo das pessoas”, descreve.
“Quando vamos à internet procurar algo da Fordlandia encontramos duas designações: cidade fantasma e cidade utópica. Cidade fantasma porque ficaram lá as ruínas industriais, e cidade utópica que remete para o sonho do Henry Ford de idealizá-la à luz dos seus preceitos, isto é, pôr os indígenas a comer comidas enlatadas dos Estados Unidos, trabalhar sob os horários dos Estados Unidos, e não do clima da Amazónia, vigiar os trabalhadores dentro de casa para ver se não bebiam ou dançavam músicas indígenas”, especifica a realizadora de “48” e “Luz Obscura”.
“Fizeram uma produção extensiva e, como queriam ganhar dinheiro, a questão era o lucro e arranjar borracha barata para os pneus automóveis, plantaram as árvores muito próximas. Bastava uma ser atacada por parasitas, para a plantação toda ir por água abaixo, que foi o que aconteceu”, conta.
Susana de Sousa Dias revela que já teve “vários pedidos de vários festivais, antes e depois da estreia”, por isso o filme “Fordlandia Malaise” deverá continuar o circuito internacional.
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