“O que Podem as Palavras”, exibido na edição em curso do DocLisboa, recupera a publicação das “Novas Cartas Portuguesas”, obra de três escritoras lançada em 1972.

As duas realizadoras, Luísa Sequeira, também autora do filme que relembrava a primeira cineasta portuguesa (“Quem Foi Bárbara Virgínia?”), e Luísa Marinho, ressaltaram ao SAPO Mag alguns aspetos sobre o terramoto do livro e a importância para a construção do feminismo em Portugal.

O conjunto de poemas, reflexões, histórias e, principalmente, temas tabus do Estado Novo, causou furor entre a censura destes tempos. Em 2014, a escritora e investigadora Ana Luísa Amaral reuniu as “três Marias” (Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa) para relembrar estes tempos e o que decorreu em torno do grande “desaforo” que foi a própria escrita da obra – já que nem sequer chegou às livrarias. É em torno destas entrevistas que o filme se desenrola.

Luísa Marinho e Luísa Sequeira

O grande "desaforo"

Foi Maria Teresa Horta a primeira a causar escândalo: com “Minha Senhora de Mim”, lançado em 1969, ela caiu imediatamente no radar da censura do regime. E à editora Dom Quixote foi dito que “se publicarem outra vez um livro desta senhora eu fecho-lhe a casa. Qualquer livro. O livro que ela escreveu é um desaforo!”.

Três anos depois, ainda se vivia sob o governo de Marcello Caetano, período que passaria à História como a grande oportunidade perdida para o regime se renovar. Na verdade, pouco tempo depois de Caetano assumir o lugar que pertenceu a um único homem durante quase quatro décadas, as inúmeras pressões políticas que grassavam na altura (movimento estudantil, greves, etc,) favoreceram as argumentações da linha dura do regime. E o Estado Novo voltou logo a ser o que sempre foi.

Humilhação e "pornografia"

O trabalho das escritoras nem chegou à fase de comercialização: denunciado por um tipógrafo, foi logo apreendido pela censura e as autoras foram sujeitas a um processo judicial. Mas, diferente do que se poderia esperar, não foi conferido ao livro qualquer estatuto político, mas antes tratado pela “polícia dos costumes”, que se apegava a algumas passagens mais picantes para humilhar as autoras e designá-lo como pornográfico...

Conforme observa Luísa Marinho, o Portugal da época era profundamente conservador e a mentalidade patriarcal, reforçada pelo catolicismo, era a norma. Nas “Novas Cartas Portuguesas”, as autoras abordam o país em diversas vertentes – política, social, cultural ou histórica –, falam do colonialismo, da opressão política ou da violência contra as mulheres.

“Curiosamente, as referências políticas do livro são abafadas durante todo o processo a que as autoras foram sujeitas”, nota a realizadora antes de acrescentar que "não era útil ao próprio regime referir o peso político do livro. Por isso, optaram por tentar humilhá-las pelas passagens mais eróticas e, principalmente, pela crítica aos homens e ao machismo. O ego ferido da masculinidade exigiu castigo”.

Um tiro pela culatra

O tiro, inusitadamente, saiu pela culatra quando a proibição do livro e a ameaça de prisão das autoras correu o mundo das organizações e manifestações feministas.

“Apesar da tentativa de esvaziamento político, o governo não estava à espera de uma onda de solidariedade internacional e protestos por parte de centenas de mulheres e grupos feministas em todo o mundo e, consequentemente, da repercussão que teve na imprensa internacional”, aponta Luísa Sequeira.

Assim, “o que era para ser um caso sem importância passou para uma outra dimensão, mais potente, abrangente e simbólica que resultou numa causa internacional de resistência”.

Um marco para o feminismo

Apenas poucos dias depois do 25 de abril e do fim da ditadura, as escritoras foram absolvidas.

Apesar de a obra não ter sido pensada para uma agenda feminista e almejava falar de liberdade num modo mais abrangente, foi no nascente movimento em Portugal que o projeto alcançou grande eco.

“O livro foi um marco, principalmente para a reflexão sobre a sociedade patriarcal e os direitos das mulheres”, reflete Luísa Marinho.

Havia antes, conforme relembra, tinha já uma história de luta feminista, apesar de tímida: “Também cá houve sufragistas, reflexão sobre os direitos das mulheres e mesmo organizações feministas nos inícios do século XX, destacando-se o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas. O Estado Novo conseguiu abafar essas reflexões mais progressistas e só depois do 25 de Abril foi possível essa abertura”.

Já Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno, logo depois de saírem do tribunal em liberdade – já depois da revolução – anunciaram a criação do Movimento de Libertação das Mulheres, que organizou a primeira manifestação feminista no país depois da revolução.

“Como se vê nas imagens de arquivo, foi boicotada por centenas de homens. Com os contornos que a revolução tomou e todas as tensões políticas, o feminismo foi um pouco posto de lado e as 'Novas Cartas Portuguesas' ficaram como que esquecidas durante muitos anos”, complementa Marinho.

Para quem não esteve na sessão do DocLisboa, o filme está previsto para estrear nas salas em 2023.