Dia de filmes cheios de calor. Com uma estreia visceral de Lucrecia Martel, que figura na secção “Herói Independente” deste ano e inscreveu o seu nome na história do cinema argentino do século XXI. E algures no nada também foi parar o organizador do "Desolation Center", um conceito de festival que dá nome ao filme e que mistura punk, rock e experiências alucinantes. O domingo traz também muitos filmes da Competição – entre os quais o romeno "Pororoca", o irlandês "The Missing Thing" e o francês "Les Garçons Sauvages".

O pântano da oligarquia rural

Calor, bêbados e animais mortos juntam-se num simbólico “pântano” na obra de estreia de Lucrecia Martel, "La Ciénaga", que em Portugal se chamou precisamente "O Pântano".

Em 2001, esta realizadora de uma longínqua Salta, cidade de 600 mil habitantes no extremo Noroeste argentino, logrou dar uma contribuição decisiva para a implantação do Novo Cinema Argentino no circuito internacional. Na produção, obteve os préstimos de Lita Santic, também responsável pela estreia de Pablo Trapero dois anos antes com “Mundo Grua”.

La Ciénaga é uma pequena localidade que efetivamente existe; mas também significa pântano, nome simbólico mais do que apropriado para aquilo que segue. Martel pinta as tonalidades deste retrato de família com uns pouquíssimos planos iniciais: os copos, a floresta, o animal na lama, a piscina suja e, principalmente, um bando de adultos completamente inertes. Quando Mecha (Gabriela Borges) cai, acusando os efeitos do álcool e cortando-se com alguma gravidade, serão as adolescentes que dormitavam dentro da casa a surgirem em seu socorro. Neste ambiente de decadência mórbida, mais ninguém consegue fazê-lo.

O filme não tem uma história propriamente dita e vão-se interligando, aparentemente ao “calhas”, acontecimentos fortuitos, uns mais importantes do que outros e o onde é o próprio quotidiano que pode fornecer os maiores perigos. Mecha tem uma prima, Tali (Mercedes Morán), que se inscreve entre as típicas “pessoas comuns” do universo de Martel – uma provinciana de classe média baixa que inveja a prima “rica” e só diz banalidades. Mas também tem outra finalidade: a ideia de família “normal”.

Esta, obviamente, é um mito; há adolescentes em plena pulsão sexual (Leonora Balcarce), pela carência e o desejo homossexual (Sofio Bortolotto), há o seu irmão mais velho (Juan Cruz Bordeu) um “engatatão” que vive com a ex-amante do pai, há Isabel (Andrea López), uma criada tratada como tal (“índia carnavaleira”, acusam), num papel crucial. E, sempre, muitas e ruidosas crianças.

Outro dos seus temas é a religiosidade – não a “espiritual”, mas como representação das demandas supersticiosas da população. Mais do que crenças em santas padroeiras, “virgens” e aparições, estas chegam a todos via televisão, esta revelando-se um meio tão importante para difusão da alienação quanto o seu conteúdo. Será um tema mais explorado no filme a seguir, "La Niña Santa" ["A Rapariga Santa", 2004] – embora já se anuncie aqui o seu desencanto laico como a última fala da personagem de Moni.

"O Pântano" é a porta de entrada para os perigos do quotidiano e os retratos da "gente comum" de Martel – onde pela última vez (considerando os seus três primeiros filmes) os exteriores serão relevantes – ressaltando, no entanto, que servem para reforçar a clausura do indivíduo, um dos temas dos seus dois filmes seguintes.

A desolação da era-Reagan

Um momento histórico que não desperta boas memórias, marcado por conservadorismo e repressões violentas, foi a era-Reagan – espelho do que acontecia um pouco por todo o lado no início dos anos 80. De uma necessidade de ação libertária e utópica nasceu o "Desolation Center" – mais que um evento, ou melhor, vários deles, um “conceito”. Basicamente, Stuart Swezey, o idealizador, convenceu algumas bandas e alguns muito bem dispostos fãs a embarcar em autocarros para o deserto e tocar. São “festivais” hoje considerados como embriões de mega-eventos posteriores, como Lollapalooza e Coachella.

O punk, como evidente em várias propostas do IndieMusic desta edição, segue incontornável como pontapé para as mais diversas liberdades e tomadas de posição. Também aqui tudo começa com eles e uma necessidade desesperada em fugir a uma polícia, que a estas alturas ataca com o pelotão de choque todos os concertos de punk rock. Um músico dos icónicos Black Flag, a dada momento, assegura a uma apresentadora de televisão, ignorante e sensacionalista como é habitual, que "a polícia representa a nova força neonazi".

Há momentos muitos especiais: Mark Pauline, um verdadeiro artista da era industrial (e bélica), responsável por brincadeiras muito perigosas, é um convidado de um dos concertos no deserto. Ele termina por criar um belo simulacro de fim do mundo, perfeitamente completado pelos Einstürzende Neubaten no alinhamento – isso em 1984, quando andavam no auge das suas próprias experimentações com percussões do mundo “real”. Assim, "noise" e explosões conjugam-se na distância do deserto para alguém resumir o espírito de felicidade experimentado pelos presentes: “anarquia total!!!” Por outras palavras, o êxtase do caos.

Tudo muito espontâneo e, certamente, ilegal. Estes empreendimentos muito particulares, que ainda terão nas suas fileiras nomes como os dos Sonic Youth e entre os entusiasmados espectadores Suzi Gardner (protagonista em outro filme do IndieMusic sobre a sua banda, as míticas L7), até fazem o empreendedor e também realizador do filme, Swezey, comparar-se a Fitzcarraldo, o personagem homónimo do clássico de Werner Herzog que coordenava o transporte de um navio pelo meio da floresta amazónica...

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