
Bollywood, famosa pelos seus luxuosos números de música e dança e pelas enormes equipas de produção, vê-se agora confrontada com um novo tipo de espetáculo: a Inteligência Artificial (IA).
Desde alterar finais icónicos a gerar filmes inteiros, a IA está a abalar a indústria cinematográfica multimilionária da Índia, causando alarme a alguns e entusiasmo a outros.
O debate surgiu pela primeira vez quando os produtores relançaram o sucesso "Raanjhanaa", de 2013, com um final modificado pela IA, quando o filme hindi foi dobrado para tâmil, a língua do sul da Índia.
O novo desfecho transformou o trágico final da morte num esperançoso — com os olhos do protagonista a abrirem-se bruscamente —, gerando a indignação do realizador Aanand L. Rai e da estrela Dhanush, que condenaram a mudança como uma violação dos direitos de autor.
"Este final alternativo despojou o filme da sua própria alma", publicou Dhanush nas redes sociais, após o lançamento da nova versão em agosto.
"As partes envolvidas avançaram com o projeto apesar da minha clara objeção", disse Dhanush, considerando o uso da IA para alterar os filmes "um precedente profundamente preocupante tanto para a arte como para os artistas".
"Ameaça a integridade da narrativa e o legado do cinema", acrescentou.
O realizador Rai disse que, embora a IA seja "definitivamente o futuro... não está lá para mudar o passado".
Dias depois, a empresa de entretenimento Collective Artists' Network anunciou a primeira longa-metragem da Índia totalmente gerada por IA, "Chiranjeevi Hanuman - The Eternal".
O épico mitológico, com estreia prevista para 2026, pretende unir lendas antigas com tecnologia de ponta para um público global, contando a história do deus-macaco hindu Hanuman.
Nem todos os cineastas ficaram impressionados.
"E assim começa", escreveu Vikramaditya Motwane nas redes sociais. "Quem precisa de argumentistas e realizadores quando é 'Made in IA'?"
Carne e osso
A indústria está a preparar-se para uma batalha.
De um lado estão aqueles que vêem a IA como um disruptor capaz de reduzir custos e substituir exércitos de figurantes e técnicos nas produções de Bollywood, famosas pela sua mão-de-obra intensiva.
Do outro, estão os defensores da arte, da imprevisibilidade e da expressão humana.
Alguns veem oportunidade no uso da IA para impulsionar os filmes tradicionais.
"Não creio que a IA signifique que não possa haver carne e osso", disse o realizador Shakun Batra, que criou uma série de curtas-metragens em cinco partes, utilizando IA. "O melhor futuro seria quando dois conjuntos de competências se fundissem".
Mas insiste que a tecnologia deve complementar, e não anular, a criatividade humana.
"Não incentivo a IA como substituta do esforço humano de expressão", disse Batra, conhecido por dramas emocionantes de Bollywood como "Ek Main Aur Ekk Tu", "Kapoor & Sons" e "Gehraiyaan".
O veterano cineasta Shekhar Kapur, realizador de clássicos como "Masoom", "Mr. India" e o britânico "Elizabeth", nomeado para sete Óscares, de 1998, desvalorizou a ameaça.
Disse que a IA não poderia substituir uma boa narrativa.
"As melhores histórias são imprevisíveis e a IA não consegue lidar com a imprevisibilidade", disse à agência France-Presse (AFP).
"A IA não consegue, neste momento, criar grandes atuações no ecrã — porque se olharmos para qualquer grande estrela deste mundo, são os olhos que atuam, não o rosto."
Kapur disse que a IA seria destrutiva apenas para os cineastas que se baseiam em metáforas estereotipadas.
"Se os seus filmes são previsíveis... então, claro, a IA irá destruí-los", acrescentou. "Talvez algum miúdo, algures, consiga fazer o que estás a fazer."
Em vez disso, disse que a IA, na sua melhor forma, abriria a indústria a novas ideias.
"A IA é uma tecnologia extremamente democrática porque oferece oportunidades para aqueles que nunca as teriam", disse. "Quantas pessoas na Índia podem pagar escolas de cinema?"
Igualdade de condições
O surgimento da IA atingiria inicialmente filmes de alto orçamento, como filmes de super-heróis, onde se "depende da ação", disse Kapur.
Kapur está a integrar ativamente a IA no seu próprio trabalho e até planeia estabelecer uma escola de cinema focada na IA na favela de Dharavi, em Bombaim.
"A IA irá dar poder aos criadores, nivelar as condições de concorrência para os cineastas independentes e até mesmo conduzir à criação de estrelas e personagens de cinema totalmente novas, geradas pela IA", disse.
Mas os cineastas também salientam que o futuro dos filmes está nas mãos do público.
Rai, realizador de "Raanjhanaa", diz que se sentiu confortado pelo apoio dos fãs à versão inalterada, mesmo 12 anos após o lançamento original.
"A forma como reagiram à IA é muito mais importante do que a minha", disse. "É mais um filme deles do que meu".
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