Com "A Metamorfose dos Pássaros", premiado no Festival de Berlim, a artista Catarina Vasconvelos vai ao encontro das mulheres do seu passado que nunca conheceu: a mãe e a avó, Beatriz, carinhosamente apelidada de Triz.

A realizadora aborda a sua família como uma galeria de quadros animados e de natureza morta, um gesto de criação poeticamente visual que desenha um legado enriquecedor para contagiar emocionalmente os espectadores.

O SAPO MAG conversou com a artista que encontrou no cinema o seu possível vínculo com memórias e afetos.

O seu filme foi uma intenção de “resgate” ou de criação de memórias, sendo que a Catarina as resolve num terno poema visual. Foi uma forma de criar um certo refúgio para que o espectador não possa “infiltrar-se” esse intimismo?

Há dois aspetos importantes que devo mencionar. Primeiro, não estudei cinema, sou de Belas Artes, e isso é crucial na forma como me aproximo do cinema. Venho desta estrada, portanto todo o universo que trago para o cinema é de arte, um tratamento algo plástico, como de "tableau vivant", de quadro, de pintura. Ao mesmo tempo, quando comecei a fazer o filme, que foi há cerca de seis anos  e tem toda a razão em usar a “palavra” resgate  foi porque o meu avô teve a necessidade de queimar a correspondência entre ele e a minha avó Beatriz.
Na altura, esse seu ato chocou-me e muito, até porque nunca cheguei a conhecer a minha avó e estava crente que iria conhecê-la melhor através dessas mesmas cartas. Portanto, tive essa ideia de resgatar alguém que nunca conheci, e durante esse processo, comecei a ir mais fundo. Seja através de entrevistas aos meus familiares, como ao meu pai. Embora tenham sido muitos generosos, tive sempre a singular sensação de que não estavam a contar-me tudo. Escondiam-me algo. Foi algo de que me fui apercebendo e apelidando de ‘mistério das famílias’, os “não ditos”, o que não é contado. Não por mal, mas que são uma espécie de regra de ouro entre famílias.
Como tal, acabei por ter muito espaço em branco. Tinha que preencher esses espaços! Por um lado, senti alguma frustração, por outro foi uma espécie de carta-branca para criar, inventar o que não sei. Com isso, o filme foi adquirindo esses contornos, entre o documental e a ficção, e de um momento para o outro existiam ‘coisas’ que eram fabuladas, repensadas, até porque não sabia como eram verdadeiramente. Como eram os meus pais e tios quando eram novos, apesar de ter relatos do que eram famílias e mulheres a viver nos tempos da ditadura. O que mudava na essência dessas famílias. Esse carácter do filme entre as memórias resgatadas e de uma poesia que gira à volta disso tem a ver com processo de construção do filme. Um não vive sem o outro. Hoje penso "que bom que não disseram-me tudo". Para que fosse possível criar esta linguagem, toda esta não só poesia, não ser só sobre esta família, mas partindo dela mesmo para abordar elementos ainda maiores.

No preenchimento dos espaços em branco, existe também toda uma criação de um panorama sociopolítico da juventude dos seus avós, pais e tios, como o retrato do Portugal pré-25 de Abril. Queria que me falasse sobre essa reconstituição.

Esta família cresceu entre os anos 50, 60 e 70 [Estado Novo]. Para mim era importante abordar, primeiro, a família e o seu desenvolvimento, mas também do que se passava à volta deles. Reconstruir um panorama político. Por isso utilizei a coleção de selos do meu avô Henrique e percebi que, olhando através deles, conseguiria traçar, de modo geral, a história de um país e das suas ditas colónias ultramarinas. Como se pode constatar no filme, quase todos os selos oriundos de Angola ou Moçambique tinham uma alusão a António Oliveira de Salazar, seja através barragens, pontes ou outras construções, o que dá uma ideia de sufoco vivido na época. Tudo que este homem tocava, automaticamente ganhava o seu nome.
Tentei implementar essa ideia no filme para transmitir a juventude asfixiante de Jacinto e dos seus irmãos. Outro elemento que tento abordar é o dito choque geracional. O meu avô nasce em 1926, no início do Estado Novo, enquanto o meu pai nasce em 1950. E como tal, desencadeará um desajuste geracional e político, não com isto afirmando que os meus avós eram pró-Salazar, mas a verdade é que nunca conheceram outra realidade sem ser aquela. E os meus pais e tios já se encontravam atentos ao que se estava a passar em França, Bruxelas [Bélgica], entre outros [países], tendo um termo de comparação que suscitou consciências políticas. Em “A Metamorfose dos Pássaros” tentei, com pormenores, criar um conjunto de apontamentos do cenário político-social desta família, uma espécie de pano de fundo para o enredo.

Gostaria que me explicasse o porquê da escolha da realizadora Cláudia Varejão (“Amor Fati”, “Ama-San”) como incorporação da sua avó.
Primeiro que tudo, tem uma voz extraordinária. Depois, porque é uma pessoa muito próxima e este é um filme feito com relações emocionais. Todas as pessoas que foram trazidas possuem uma proximidade. Certo dia estava a ouvir a Cláudia na rádio e nunca tinha ouvido assim a voz dela, dessa maneira, e fiquei impressionada. E admiro o trabalho da Cláudia, aliás, admiro a Cláudia. Portanto, ter ela no meu filme a interpretar a avó que não conhecia, mas pela qual era fascinada, marcou-me enquanto realizador, mulher e portuguesa.

Existe um momento curioso: quando o seu pai, Henrique, confronta-a com o porquê da sua mudança de nome no filme para Jacinto. Este diálogo tem como finalidade romper o lado “verídico” da obra, dando a ideia que aqui há espaço para a criação ficcional.

O que de extraordinário tem o cinema é a sua capacidade de repensar o mundo. “E se isto fosse assim” ou “se o meu pai se chamasse assim”. Todas estas possibilidades são-nos dadas com enorme generosidade pelo cinema. Ao mesmo tempo, essa mesma generosidade e capacidade de construção são notórias se as desfizermos. A única forma que tinha para mostrar essa mesma construção no filme era se desconstruísse um "bocadinho" … e esse confronto com o meu pai foi real [risos].
Por um lado, percebo o lado dele, estou a fazer um projeto sobre a família e altero o nome dele! Achei interessante incorporar essa sua reação e de certa forma vai ao encontro com a natureza de "A Metamorfose dos Pássaros", a diluição do que é verdade ou ficcionado. Esta sequência é crucial para entender que existe essa vertente. Creio que toda essa construção/desconstrução, o de mostrar e esconder, percorre em todo o filme.

E porquê Jacinto como nome fictício?
Uma coisa que percebi da minha avó Triz é que existia um amor à Natureza, às plantas, uma capacidade extraordinária de fazer nascer e crescer "coisas". Senti-o em várias fotografias, nas plantas que plantou. Era algo que sabia dela, não foi preciso contarem-me. Às tantas, certamente que queria usar esta metáfora de batizar o primogénito de Jacinto, um filho com raízes em terra enquanto o marido está constantemente no mar. Essa explicação acontece no início para que no fim ocorra a desconstrução. E o mais, já bastava a confusão que era de ter dois Henriques [avô e pai] na história. Era o fim da picada!

A situação pandémica alterou por completo o calendário de estreias. Veremos “A Metamorfose dos Pássaros” nos cinemas portugueses?

Gostaríamos muito que o filme estivesse estreia comercial. Aguardamos pelas datas para verificar qual a mais apropriada. Seja este ano ou no próximo, mas como referiu, com esta situação muitos filmes ficaram com as suas estreias atrasadas, o que causou uma espécie de linha de espera. Anteriormente, as pessoas já iam pouco aos cinemas, atualmente têm que trabalhar ainda mais e pensar em novas estratégias para novamente levá-las às salas.

O que pensa do streaming como solução de estreia?

“Ninguém” gosta que os seus filmes sejam vistos em streaming porque são feitos para serem vistos no cinema. As salas são as casas para os filmes. Mas neste caso especial, se o filme está selecionado num festival, mais vale acontecer, porque imaginamos que, para o ano, estas obras de 2020 não terão o devido espaço pe outras mais recentes. Não se deve matar a carreira a estes filmes, apesar de não terem as estreias dignas projetadas pelos seus autores, produtores e todos os envolvidos. Sei que é um tema que tem dado discussão de certa forma fraturante na nossa comunidade, mas creio que isto foi tentar dar uma resposta rápida a uma situação que ninguém previa. Este cenário do streaming garantiu o destaque a filmes de 2020 que, de certa forma, não entrariam nos festivais do ano que vem.

E quanto a novos projetos?
O que tenho é mais uma ideia de filme, ou seja, está em fase de escrita. Foi um processo intenso a da produção de “A Metamorfose dos Pássaros”. De certa forma, esta quarentena serviu para me obrigar a parar um bocadinho e repensar. A ideia já está formada, o filme vai acontecer, só que, aviso, vai demorar um tempo.