A série de televisão produzida pelo menino bonito de conteúdos televisivos, o Netflix («House of Cards», «Orange is the New Black»), foi criada por Drew Goddard (produziu «Lost - Perdidos») e Steven S. DeKnight (de «Smallville» e «Spartacus - Os Deuses da Arena»), que ocupou o lugar de «showrunner» após Goddard ter partido para a realização de «The Sinister Six», tudo com a participação da Marvel no processo criativo.

Esta é uma criação que bebe claramente, na primeira temporada, das influências da obra de Frank Miller, que pode ser lida na versão original em várias compilações disponíveis em Portugal nas livrarias especializadas. Para outros, caso deste escriba, está a memória viva de Demolidor em «Superaventuras Marvel», um livro de quadradinhos que chegava até nós, nos anos 1980 e 1990, através da editora brasileira Abril Jovem.

A série distancia-se a milhas do filme falhado de Mark Johnson com Ben Affleck em 2003, um acidente de percurso que agora é brilhantemente corrigido com a produção do Netflix, que é um clássico instantâneo. Ainda assim, está longe de ser apelativa ao entretenimento de massas, especialmente se compreendermos a natureza e a origem do personagem que foi escrito para um público mais adulto na versão de Frank Miller, mas também Joe Quesada e Brian Michael Bendis, que fizeram renascer o herói nos primórdios dos anos 2000.

Se cairmos na armadilha de tentar descobrir o lado verosímil dos acontecimentos estamos a caçar gambozinos: a série é uma ficção que aborda a vida urbana filtrada por um mundo que anda de mãos dadas com um justiceiro com habilidades especiais. Ao contrário de Super-Homem e outros, Daredevil não tem super força ou voa e num dos episódios até está feito num oito, recuperando das mazelas da tareia do século que quase lhe custava a vida. Se é cego, anda pelo topo dos edifícios, é perito em artes marciais e desvia-se das balas graças ao seu radar, que é uma espécie de sonar, é um compromisso que o espectador.

A escolha do protagonista recaiu em Charlie Cox, que se revelou em «Boardwalk Empire». É uma opção curiosa que ao longo da temporada parece ser a mais acertada no equilíbrio que demonstra em cena entre o advogado cego e o herói mascarado. Matt Murdock era um miúdo de Hell's Kitchen, Nova Iorque, que um dia, numa ação de altruísmo, salva um homem de ser atropelado, mas a ação custa-lhe a visão ao ser vítima do derramamento de um líquido radioativo que o camião transportava. Mais tarde começa a percecionar com precisão imaculada os sons, as sensações e a antecipar as reações de tudo o que está à sua volta e apesar de estar cego, Matt vê agora melhor do que os comuns mortais.

O seu pai era um pugilista de combates viciados e acaba por morrer quando trai a máfia e vence um combate que devia ter perdido. O herói vive assim assombrado com o sentido de justiça numa cidade corrupta devido ao desenvolvimento e especulação urbanística e existe um homem que decide reunir os diversos sindicados do crime para dominar Hells Kitchen: Wilson Fisk é a figura na sombra e o principal adversário de Daredevil.

Em termos de elenco de uma série da Marvel, existem mais duas em exibição («Agents of S.H.I.E.L.D» e «Agent Carter») e «Daredevil» é a que reúne, de longe, os melhores «performers» em cena, com uma mão cheia de interpretações carismáticas que muitas vezes colocam em segundo plano o protagonista. Os atores não só interpretam várias figuras da mitologia de «Daredevil» como existiu o cuidado e a inteligência de explorar as histórias das mesmas, aproveitando a riqueza dos comics.

Alguns personagens são mais intervenientes do que outros. Para referir alguns como Foggy Nelson (Elden Henson), o parceiro de advocacia e melhor amigo de Matt; Claire Temple (Rosario Dawson), a “enfermeira da noite” que cuida das mazelas do herói; o mestre Stick (Scott Glenn), que ensinou o jovem Matt Murdock (Skylar Gaertner) a controlar a falta de visão e a utilizar os seus poderes; Karen Page (Deborah Ann Woll), a secretária e um dos romances trágicos do personagem (uma das melhores interpretações da série); a sensual Vanessa (Ayelet Zurer), a dama branca e o interesse amoroso do némesis de Daredevil. Como Wilson Fisk, o maior vilão deste universo iconográfico – existem outros mas nenhum chega perto do peso, literal e metafórico, de Fisk, também conhecido por King – está o multifacetado Vincent D'Onofrio, num papel de carreira.

A primeira época estabelece duas linhas narrativas: o passado e presente de Daredevil e Fisk, ambos filhos da mesma cidade que tiveram infâncias e crescimentos definidas por acontecimentos trágicos. A série com tons noir aborda diversas facetas do mundo real, como a corrupção, o jornalismo moderno, os media e a força do dinheiro. Ao mesmo tempo é um drama criminal que lida com várias mudanças como a ambição, a justiça e os vários demónios internos que dominam a vida dos personagens, com a religião e o sentido de certo e errado a povoarem os ritmos narrativos do herói e do seu antagonista.

«Daredevil» é uma série sem qualquer de filtros, violenta e adulta, que entretém mas também é cerebral no estudo da natureza humana numa luta entre o bem e o mal pelo coração de uma cidade corrompida e apodrecida pelo crime. Abre a porta para outras séries com cariz mais adulto como «Luke Cage» e «Iron Fist», que vão sair da fábrica de ideias que é a Marvel para os ecrãs do Netflix. «Daredevil» é uma série de culto a não perder.

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