Ontem, no Cinema São Jorge, durante a 4ª edição do Misty Fest, subiram ao palco duas influentes e tradicionais bandas portuguesas: os Gaiteiros de Lisboa e os Deolinda. A noite misturou o ar expedito que a brincalhona Ana Bacalhau traz a letras populares com a experiência de um grupo que dispensa apresentações.

Entre português, português arcaico, umas interjeições em inglês e até galego, fomos apresentados a um repertório cheio de sucessos de ambos os conjuntos. Recebemos os dez músicos, envoltos nos tons místicos e célticos da gaitas. Ana acompanhava, com os saltos, o forte rufar dos tambores. O público absorvia, lentamente, toda a força - com ares serranos - que o grupo emanava assim como a voz séria e veloz da vocalista. Foi com uma alegria latente e um timbre grave a lembrar os coros alentejanos que chegámos ao primeiro interlúdio.

Ana tomou a palavra: «Este é um concerto especial para nós. Tocamos com uma das bandas que nos ensinou a gostar de música portuguesa e nos influenciou quando começámos a criar. Quisemos transformar isto num encontro de amigos e juntar os repertórios para que tudo soasse a uns Gaiteiros Deolinda... ou a uns Deolinda Gaiteiros!».

"Seja Agora", agora com um arranjo diferente, e um baum de fundo das graves vozes dos homens por trás dos tambores, aparecia com um poder redobrado. Sérgio Nascimento, baterista dos Deolinda, olhava os percussionistas e as bandas divertiam-se numa cumplicidade que soava ainda melhor do que transparecia. Novo interlúdio, e é como «uma canção de enganos onde os intervenientes na conversa podem também ser os intervenientes na história» que a vocalista nos apresenta "Não Ouviste Nada". E, mais uma vez, as vozes másculas e graves dos gaiteiros trazem uma lufada de ar fresco ao jeito gingão, tão Alfama ou Bolhão, da cantora portuguesa.

Foi a vez de Rui Vaz tomar a palavra pelos músicos de Lisboa: «Isto, a nós, emociona-nos muito. Para nós, Deolinda é o símbolo que a música portuguesa está bem - e viva! Esta amizade já vem de há muitos anos - até antes dos Deolinda. E, acabámos por, no último CD, convidar a Ana a cantar connosco "Os Palácios da Rainha"». E assim recomeçou a música. Num alarido imenso, como o bulício que imaginamos num palácio a pulsar de vida das cozinhas aos jardins, chega-nos mais uma história cantada.

Desta vez de cavaquinho, Ana acompanha o ritmo dos Gaiteiros com "Fui ao Pico, Piquei-me". Mas a distância do microfone não dura muito mais, com a vocalista dos Deolinda a dar voz ao soneto de Florbela Espanca, "Os versos que te fiz", em versão gaiteira, como fez questão de explicar. Houve ainda tempo para, por três canções, Ana e o resto da banda nos deliciarem com o seu repertório, afirmarem gostar muito dos gaiteiros e fazerem a festa. Sempre expressiva e animada, com passos de dança diversos, e até um pouco de rap e beatbox, o espetáculo continuou, em ritmo acelerado e divertido.

Voltaram os gaiteiros para mais uma "musiquinha" e depois de Ana agitar o brinquinho, instrumento tradicional madeirense, foi a vez de os Deolinda deixarem o palco aos alfacinhas. Reinventaram "O teu bem faz-me tão mal" e trouxeram-nos - com pratos e tudo - mais uma música nonsense, "Fez Sábado Quinta-feira". Entre o chilrear dos passarinhos, chegou-nos "Avejão", a música metáfora acerca do poder que, segundo Carlos Guerreiro, agora, com o novo acordo ortográfico, se escreve com "ph". «Dedicamos esta canção a todos os que nos podem». Depois, fomos arrebatados pela tão popular, "Triângulo Mângulo", e como já se estavam a sentir sozinhos, os Deolinda regressaram para os acompanhar, desta vez, numa música galega. E, intercalando-se, Ana e Carlos apresentaram os músicos que os acompanhavam num estilo de improviso circense e alegre - Carlos referiu Ana como uma talentosa cantora vinda diretamente das águas da Noruega. Depois de saltos, danças e do "Movimento Perpétuo Associativo" dividido entre Pedro Casais, Rui Vaz, Carlos Guerreiro e Ana Bacalhau, os grupos abandonaram o palco entre aplausos e vozes que continuavam a entoar "Vão andando que eu vou lá ter" já mesmo depois de a música ter cessado.

Regressaram ao palco para dois encores e umas quantas chuvas de palmas. Agradeceram à equipa, à organização do evento e ao público. E nós? Nós agradecemos a iniciativa. São "encontros de amigos destes" que fazem falta para divulgar a música portuguesa tradicional, agitá-la e trazê-la de novo para a rua, para o nosso dia a dia. Porque não há nada tão especial como ouvir o quotidiano de sempre entoado por todos, o estranho e o sem sentido de mãos dadas e instrumentos originais e tão nossos do brinquinho de Ana aos tubarões dos Gaiteiros.

Fotos: Ana Rita Santos