Isto não é uma crítica a um álbum. Isto é um texto escrito propositadamente para fazer inveja a quem o ler. Cinco e meia da tarde de terça-feira, dezanove graus centígrados, a chuva já tinha dado um ar da sua graça e o Reflektor dos Arcade Fire estava à nossa espera, dentro de um carro. Sim, por mais insólito que possa parecer, o CD que a editora nos disponibilizou estava blindado contra piratas e só podia mesmo ser ouvido no leitor de um automóvel.

Saiu-nos a sorte grande, pensávamos nós. Àquela mesma hora, enquanto nos preparávamos para clicar no play do leitor de CD’s, certamente muitos estariam a vasculhar o calendário pela centésima vez, para confirmar se realmente ainda faltavam assim “tantos” dias para conhecerem o novo trabalho de estúdio dos canadianos. Confesso que a ganância nos subiu um tudo-nada à cabeça. Sim, também confesso que podíamos ter partilhado aquele momento com mais alguns, uma vez que restavam três lugares na parte de trás do carro. “Mas não era a mesma coisa”.

Cedo percebemos que Reflektor não era um álbum para ser rotulado, dada a sua elevada heterogeneidade estilística. Ainda assim, talvez possamos qualificá-lo como um álbum low-profile. Por outras palavras, Reflektor tem um âmago pouco explosivo, uma identidade reprimida, que parece travar uma luta constante para se desenlear. “Normal Person”, quinta faixa da primeira parte do disco, é um dos raros momentos em que o rock se aproxima do seu estado mais imaculado. De resto, tudo é aleatório, tudo é promíscuo, tudo é nómada.

A verdade é que nos deixámos enfeitiçar com muita facilidade, coisa que não deve ter passado despercebida às pessoas que, durante uma hora e vinte e cinco minutos, olharam para o interior do carro e se perguntaram o que é que aqueles dois malucos estavam ali a fazer. Nessas alturas, tivemos vontade de abrir os vidros e perder as estribeiras com o volume no máximo, qual discoteca ambulante. Mas era segredo. Em vez disso, pegámos numa folha e numa caneta e começámos a desenhar a palavra “ARCADE” e uma espécie de fogo em baixo.

Estar tanto tempo fechados num carro pode ter causado algumas alucinações, mas também nos trouxe alguma lucidez. Percebemos que, afinal, fazia todo o sentido ouvirmos este álbum, pela primeira vez, naquelas circunstâncias. Praticamente tudo à nossa volta era uma superfície refletora: as janelas, os retrovisores, as lentes dos óculos graduados, o ecrã da máquina fotográfica, até o próprio CD (já para não falar no colete refletor). Isso ajudou-nos a decifrar a fórmula de Reflektor. O novo disco dos Arcade Fire é um espelho que reflete várias influências, várias inspirações. É uma súmula da variedade e da imprevisibilidade.

A bateria de Jeremy Gara conhece novos terrenos, que se afastam do acústico e se aprochegam do digital. Raros são os riffs e a expressividade das guitarras. Por outro lado, abundam os samples do teclado. Sentimos um aroma a Pink Floyd, a Talking Heads e até a Michael Jackson. Se dentro de um carro foi bom, como será ao vivo e a cores?

Fotografias: Débora Lino