Pré-lançada em fevereiro, no Correntes d’Escritas, festival literário da Póvoa de Varzim, a biografia de Natália Correia, editada pela Contraponto, tem quase 700 páginas e demorou seis anos a escrever, como foi assinalado na altura, numa conversa entre o jornalista João Gobern e a escritora Filipa Martins.

“Uma das biografias que mais falta fazia era a de Natália Correia”, assinalou João Gobern, destacando que, ao ler-se esta obra, percebe-se até que ponto “se estendia a presença tentacular da biografada”.

“O dever de deslumbrar” chega também no ano do centenário da escritora e poeta, que se assinala a 13 de setembro, e permite ficar a conhecer a realidade do país nos seus 70 anos de vida.

“Mesmo os que têm uma secreta embirração podem partir para esta biografia quase como um dicionário histórico sobre como foi Portugal durante a vida de Natália Correia”, destacou o jornalista, apontando que o livro aborda a obra da autora, “uma dimensão politica extraordinária, a dimensão sentimental e o seu ‘toca e foge’ com a religião”.

Citando alguns “episódios deliciosos” contados na biografia, João Gobern referiu que Natália Correia odiava ir à praia e vestir fato de banho, e que das poucas vezes que o fez foi para poder falar com Humberto Delgado, longe da PIDE, a polícia política da ditadura.

O jornalista referiu-se também à fase do Botequim, o bar que Natália Correia abrira em Lisboa, onde a política era vivida intensamente, e sublinhou que a biografia é uma obra que, “partindo de uma figura central, acaba por ser um retrato nosso”.

Filipa Martins recordou que Natália Correia foi “a autora mais censurada do Estado Novo”, uma das vozes mais criticas da ditadura e, depois, da entrada de Portugal na União Europeia.

“O pensamento dela era premonitório”, salientou.

Filipa Martins contou que Natália Correia começou a cantar músicas românticas na rádio, na Emissora Nacional, quando ainda era nova, sob o pseudónimo Célia Navarro.

Posteriormente, trocou a música pelas palavras e começou a declamar poesia no Rádio Club Português, num programa açoriano (naturalidade de Natália Correia), sob o pseudónimo Natália Dias Ferreira.

Recuando à infância, Filipa Martins contou que a poeta não sabia do pai, que a abandonou aos 3 anos, tendo sido criada no seio de uma familia só de mulheres, uma “família amputada para lutar contra o Estado Novo”.

“Casou-se aos 19 anos só com o objetivo de atingir a maioridade para poder começar a trabalhar, mas foi um casamento infeliz e aos 21 anos já viviam separados. Para tal, teve de provar em tribunal o adultério por parte dela própria”, revelou.

Outro aspeto abordado na biografia foi o facto de nunca ter querido ter filhos, afirmando mesmo: “A minha árvore não nasceu para dar frutos”.

“Começou então a colaborar com jornais. Foi quando começou a escrever sobre a condição feminina, foi extremamente precoce a escrever sobre isto”, contou.

Filipa Martins destacou ainda o seu sentido de humor e inteligência, revelando que Natália Correia “nunca se assumiu como feminista e nunca o fez contra os homens”.

“Defendia o trabalho das mulheres e sobre isto dirigiu-se aos cavalheiros: ‘Se não querem que as suas mulheres os traiam e arranjem amantes, deixem-nas trabalhar’. Isto aos 23 anos, em pleno Estado Novo”, assinalou.

A autora da biografia disse ainda que a entidade casamento era muito valorizada por Natália Correia, para quem “não fazia sentido o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e não achava bonito pares de mulheres ou de homens”, isto não obstante o facto de ela própria ter tido “relações homossexuais”.

Filipa Martins fez também referência ao casamento de Natália Correia com um americano, com quem partiu para os Estados Unidos, numa “lua-de-mel que foi uma lua de fel”.

Serviu-lhe para escrever uma crónica em que critica o povo americano, sobretudo no aspeto estético, por achar que era revelador de falta de cultura ("Descobri que Era Europeia - Impressões duma Viagem à América").

Toda a gente fazia serões na casa de Natália Correia, na Rua Rodrigues Sampaio, “mas não havia lugares vitalícios, tão depressa se era admitido no círculo como se deixava de entrar”.

“Natália tinha um código, que era o gesto grandioso: não admitia gestos pequenos. [O escritor] Luiz Pacheco era seu amigo intimo, mas a amizade acabou porque ele defecou à porta de casa dela”, contou.

A vida na Rodrigues Sampaio foi coincidente com o casamento da poeta com o empresário Alfredo Machado, “que lhe deu tranquilidade”.

“Era a única mulher em tertúlias à noite, a puxar da boquilha e a ter atitudes que não eram esperadas de mulheres, muito menos casadas”.

O seu feitio intempestivo era temido, inclusivamente pelos russos, os outros deputados tinham medo dela, “era insubordinada, os parlamentares é que tiveram de se adaptar a Natália Correia”, disse, referindo-se ao período em que foi deputada na Assembleia da República (1980-1991).

“Não cumpria os tempos, fumava no parlamento, mesmo depois de ser proibido, interpelava os parlamentares a pôr gotas nos olhos, convidou a Cicciolina para ir ao parlamento e escreveu-lhe um poema, chegava sempre atrasada à Assembleia da República”, lembrou, sublinhando que Natália Correia “tinha a sua carteira de valores”.

Sobre a leitura da obra, João Gobern destacou a voracidade com que se lê.

“Em todas as biografias há sempre momentos de respiração, de intervalo, mas a vida e obra de Natália Correia não dão intervalo a ninguém. É como ver filmes em sessão contínua: ainda um não acabou e já estamos a ver outro”, disse, acrescentando esperar que esta publicação “seja uma alavanca para reeditar a obra e editar obras nunca editadas”.

“O Dever de Deslumbrar – Biografia de Natália Correia” é o quinto volume da coleção de Biografias de Grandes Figuras da Cultura Portuguesa Contemporânea da editora Contraponto.

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