
O escritor e encenador sul-africano Athol Fugard era aclamado no seu país e no exterior por peças que expuseram as injustiças do sistema do apartheid e desafiaram os seus tabus racistas, inclusive colocando atores negros e brancos juntos no palco.
Falecido a 8 de março, aos 92 anos, escreveu mais de 30 peças ao longo de sete décadas, as mais importantes nos dias sombrios do apartheid, abordando os temas crus do regime cruel e desumanizador que terminou em 1994.
"O seu trabalho ajudou a expor a desumanidade, a injustiça e a estupidez cega do sistema para o público em todo o mundo", escreveu o jornal The Guardian em 2012 sobre o "africâner destemido, duro e obstinado".
Em 2006, o filme "Tsotsi", baseado num romance que concluiu em 1961 e publicado em 1980, ganhou o primeiro Óscar de Melhor Filme Internacional para uma produção sul-africana.
Segundo a Associated Press, o governo sul-africano disse que o país “perdeu um dos seus maiores ícones literários e teatrais, cuja obra moldou o cenário cultural e social da nossa nação”.
Numa declaração no domingo, o gabinete do presidência da câmara da Cidade do Cabo chamou-lhe "um verdadeiro patriota cujo legado continuará a inspirar gerações".
"Além das suas realizações literárias, o ativismo de Fugard para com a justiça e a igualdade fizeram dele uma figura central nas esferas culturais e políticas da África do Sul", destaca-se.
"Athol Fugard não era apenas uma sumidade no mundo do teatro; era um contador de histórias profundas de esperança e resiliência sobre a África do Sul."
Encenar a segregação

Fugard nasceu em 1932 na pequena cidade de Middelburg, no Cabo Oriental. Cresceu enquanto as leis eram editadas para manter as raças separadas e proibir os negros sul-africanos de livre circulação, educação decente e outros direitos.
A sua primeira grande peça foi "The Blood Knot", uma história de dois irmãos mestiços que estreou em 1961 com um ator branco — o próprio Fugard — e um ator negro no palco juntos e perante uma plateia multirracial.
Foi a primeira vez no sistema do apartheid e seguiram-se leis a proibir elencos e plateias mistas.
"Podíamos usar o palco para falar sobre coisas que nos causariam problemas se falássemos sobre elas aberta e publicamente em qualquer outro contexto", disse Fugard numa entrevista de 2014 para o canal American Academy of Achievement.
O dramaturgo passou a trabalhar com os Serpent Players, um grupo de atores negros, resistindo ao assédio oficial para colocar histórias sul-africanas no palco numa época em que muitos ainda achavam que apenas os clássicos europeus eram dignos.
Entre as peças mais conhecidas está "Boesman and Lena", sobre as circunstâncias difíceis de um casal mestiço, que estreou em 1969 e foi transformado num filme em 2000 com Danny Glover e Angela Bassett.
O semi-autobiográfico "'Master Harold'... and the Boys", ambientado em 1950, analisa o preconceito através da interação entre um adolescente branco e dois homens negros que trabalham para a sua família.
O tema predominante de resistência nas suas peças mais celebradas, incluindo "Sizwe Banzi Is Dead" e "The Island", que coescreveu com os atores John Kani e Winston Ntshona, solidificou o lugar de Fugard no teatro de protesto.
Fugard "espelha tanto o trauma quanto o triunfo do esforço humano na África do Sul", escreveu o The Christian Science Monitor em 1992, chamando-o de "O Rosto da Consciência da África do Sul".
O trabalho de uma vida
"O apartheid definiu-me, isso é verdade... Mas tenho orgulho do trabalho que saiu dele, que carrega o meu nome", disse Fugard à agência France-Presse em 1995.
As suas peças continuaram a ser regularmente encenadas após a primeira eleição multirracial na África do Sul em 1994, embora Fugard temesse que o fim do sistema pudesse tornar a sua escrita redundante.
Mas o legado confuso do apartheid forneceu novo material e continuou a escrever até uma idade avançada, com "The Painted Rocks at Revolver Creek" a estrear em Nova Iorque em 2015, quando tinha 80 anos.
Na época, o dramaturgo disse à NPR que "possivelmente, neste momento da nossa história, as histórias que precisam ser contadas são mais urgentes do que qualquer uma das histórias que precisavam ser contadas durante os anos do apartheid".
Fugard, que se casou duas vezes, ganhou vários prémios por seu trabalho, com destaque para um Tony em 2011 pelo trabalho de uma vida no teatro.
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