A obra, "Pequeno Livro Arquivo - pensamento, palavras, actos e omissões", sempre ligada ao Teatro da Cornucópia, que fundou, vai ser apresentada no Teatro Carlos Alberto, no Porto, na próxima quarta-feira, dia 29, por José Tolentino de Mendonça, amigo que empurrou Luís Miguel Cintra a escrever, e que também o ajudou a encontrar uma editora.

"É um balanço, de facto, da vida, e o sentimento de que a vida terminou prematuramente, porque agora é uma ‘subvida’ aquela que estou a viver", disse o ator e encenador, em entrevista à agência Lusa, expondo as limitações da doença degenerativa de que padece.

"Pequeno Livro Arquivo", composto de "pensamento, palavras, actos e omissões", remonta a 2014 quando Luís Miguel Cintra pensou: “Cheguei a velho”.

"Apeteceu-me fazer o balanço do que estava para trás", recorda agora à Lusa. "Fui rever os textos de representação de cada uma das peças e percebi que ia havendo um fio condutor que ia passando de espetáculo para espetáculo, e que fazia uma história do Teatro [da Cornucópia], com os textos [dos diferentes] dramaturgos, através das várias épocas".

Depois, "tudo seguido, é um retrato meu, uma espécie de autorretrato permanente [...], consequência da dramaturgia de cada espetáculo, do meu estado de espírito". Em cada um, “dizia mais um bocadinho, ou dizia a mesma coisa de outra maneira e por aí adiante", algo que "ia passando de peça em peça”.

“Já que não posso oferecer-me de outra maneira, ofereço uma revisão da Cornucópia que pode ajudar algumas das pessoas que voltem a interessar-se por fazer teatro de texto”, sublinha o ator sobre "Pequeno Livro Arquivo".

O livro inclui 60 textos sobre outras tantas peças de outros tantos autores, todos levados a cena na Cornucópia, que só em finais de 1975 encontrou uma 'casa', com a sede no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa.

“O Misantropo ou o atrabiliário apaixonado”, de Molière, com que a companhia cofundada com Jorge Silva Melo se estreou, em 13 de outubro de 1973, no antigo Teatro Laura Alves, “O terror e a miséria no III Reich”, de Bertolt Brecht, a primeira montagem após o 25 de Abril, “O labirinto de Creta”, de António José da Silva, “Ricardo III”, de Shakespeare, que o ator protagonizou em 1985, “A sonata dos espectros”, de August Strindberg, “Auto da Feira”, de Gil Vicente”, “Até que, como o quê quase”, de Samuel Beckett, são etapas desse "Pequeno Livro Arquivo", dividido em nove capítulos, entre o tempo durante e após a Cornucópia, até ao "ponto final", com dedicatória aos "queridos amigos".

Continuidade do projeto

Ali se cruzam autores como Federico García Lorca, Luigi Pirandello, Heiner Müller, Joe Orton e Raul Brandão, Edward Bond e Almeida Garrett, Pierre Caron de Beaumarchais e Pier Paolo Pasolini, Jacob Lenz, Arthur Honegger, Anton Tchékhov e Friedrich Schiller, Paul Claudel, Arthur Schnitzler, Jean Genet, Reiner Werner Fassbinder e Lope de Vega.

A cenógrafa e figurinista Cristina Reis, que se juntaria à companhia cerca de dois anos após a sua fundação, tem um capítulo sob o seu nome. Cristina Reis ficaria até ao fecho das portas, em 18 dezembro de 2016, na sequência dos cortes sofridos nos apoios da Direção-Geral das Artes, tornando impossível prosseguir uma carreira de 43 anos.

“Ela gastou-se terrivelmente, ali naquela sala [a do Teatro Bairro Alto], até fisicamente. Tudo aquilo que aparecia em cena tinha a mão dela”, salientou Luís Miguel Cintra.

“A sala foi feita por nós. Conhecíamos aquilo como ao nosso próprio corpo". Inicialmente, era para ser uma escola de dança, lugar de ensaios; a sala tinha a dimensão do palco do Teatro de S. Carlos. "Mas a acústica era terrível, e teve de ser corrigida, espetáculo a espetáculo".

“Eu e a Cristina sentimos imenso o fim da companhia, porque, de repente, foi como se a vida nos tivesse sido negada”.

Ambos levaram “uma vida metidos e a trabalhar naquela sala”, o que os impediu de viver o que outras pessoas viveram: "casar, ter filhos, fazer viagens, lidar com outras pessoas”.

"Tudo o que aparecia em cena tinha a mão dela”, enfatiza. No final, partiu da cenógrafa a ideia de venderem objetos e adereços para “ficarem sem dívidas e poderem indemnizar os poucos trabalhadores com contrato permanente”. “Os atores não receberam nada”, frisou.

Agora, passados mais de seis anos após o encerramento, Luís Miguel Cintra confessa-se “mais pacificado”, pois, “sem dar por isso, passou muito tempo”.

O fim da companhia à qual dedicou a vida é, todavia, algo que parece ter pressentido anos antes, quando se manifestara farto de ministros e da falta de uma política para o setor, "que se mantém".

A premonição está patente no texto que abre “Pequeno Livro Arquivo”, “Cheguei a velho”, escrito em 2014, quando fez 65 anos e "por todos os lados" quiseram começar a homenageá-lo.

Teatro

Foi o que aconteceu nesse ano no Festival de Almada, organizado pela Companhia de Teatro de Almada (CTA). Luís Miguel Cintra inaugurou o ciclo "O sentido dos mestres", onde fez uma 'masterclass' que daria depois origem ao livro "Cinco conversas em Almada", com as suas intervenções no festival.

A CTA “abriu espaço para montar uma exposição biográfica" na Escola D. António da Costa, para a qual contou com Cristina Reis.

“Percebi que começava a festa da chegada triunfante à meta, ao fim do percurso. Pelo menos queriam convencer-me disso. E levantei antes do tempo as mãos do volante, comecei a tentar fazer 'rewind' e muitas cabriolas, mas julgo que consegui, no mínimo, que não ficasse fixa a imagem que tinha dado sempre de homem de muito juízo”, lê-se nas primeiras páginas de "Pequeno Livro Arquivo".

“Os atores não são Narcisos, são 'infelices' que mentem que eu sei lá, mas sabem que a verdade é nada e é tudo”, escreve no livro. "Os atores expõem-se", afirma à Lusa. Construir uma personagem, representar, assegura, "é expor-se numa intimidade inventada”.

O autor, encenador e ator nascido em Madrid, em 29 de abril de 1949, o intérprete de peças como “Casimiro e Carolina”, de Odon Horvath, “Woyzeck”, de Georg Buchner, “Não se paga! Não se paga!”, de Dario Fo, reflete também sobre amigos, nas mais de 600 páginas de "Pequeno Livro Arquivo": os escritores Ruy Belo, Mário Dionísio, Sophia de Mello Breyner Andresen, o historiador e geógrafo Orlando Ribeiro, o cineasta Manoel de Oliveira. A eles dedica o capítulo "Em louvor de mestres e amigos".

Aborda também os espetáculos “mais íntimos”, concebidos “para pensar a relação com o espectador”, já após a Cornucópia, como “Um dom João português” e “Canja de galinha (com miúdos)”.

As principais distinções - Prémio Pessoa (2005), Prémio União Latina (2008), Prémio Árvore da Vida (2017), Honoris Causa da Universidade de Lisboa (2021) - estão também presentes na obra, com as suas intervenções, onde reconhece sempre "algo incómodo". "Distingue-me numa situação que queria de igualdade, porque me separa dos outros, porque me dá o contrário do que procuro", disse no discurso de aceitação do Prémio Pessoa.

Há dois anos, quando recebeu o doutoramento Honoris Causa da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, lado a lado com Jorge Silva Melo (1948-2022), afirmou: "Aprendemos tanto uns com os outros. Tenho saudades..."

"Pequeno Livro Arquivo - pensamento, palavras, actos e omissões" encerra com uma fotografia de António Rocha em que se vê Luis Miguel Cintra num estádio de futebol, a sorrir e de telemóvel na mão, em jeito de quem está a captar de volta a imagem de quem o fotografa. Como legenda, conclui: "Fui da tourada à espanhola ao Estádio do Dragão. Gostei de tudo. Que fique arquivado."

A apresentação da obra, editada pelas Edições 70 do Grupo Almedina, está marcada para as 18h00, da próxima quarta-feira, no Teatro Carlos Alberto, no Porto.