“Os Supridores”, do escritor gaúcho José Falero, editado pela Europa-América, é um romance sobre a sobrevivência, a pobreza e a procura de melhores condições de vida, que mistura voz culta com a oralidade expressiva dos subúrbios de Porto Alegre, no Brasil.

Editado originalmente em 2020, este romance de estreia - que venceu os prémios Alcides Maia e AGES Livro do Ano, e foi finalista do Prémio Jabuti e do Prémio São Paulo de Literatura - é também uma sátira à mobilidade social e um retrato único, muitas vezes bem-humorado, de personagens que normalmente passam despercebidas no quotidiano das grandes cidades.

Para escrever esta história, aos 33 anos, José Falero valeu-se da sua própria experiência de vida, mas também da vontade de escrever sobre a desigualdade social no Brasil, como contou em entrevista à Lusa.

Os protagonistas, Pedro e Marques, trabalham como repositores no supermercado Fénix em Porto Alegre, mas sentem-se revoltados com a falta de mobilidade social, apesar do trabalho árduo, cansados de ganhar pouco e desiludidos pela falta de perspetivas de um futuro melhor.

Decidem então elaborar um plano infalível que consideram também ser a única opção para melhorar de vida: vender marijuana de qualidade.

“Eu trabalhei em supermercado, entre muitos outros trabalhos precarizados, e além disso fui criado num contexto social muito próximo ao mundo do tráfico de drogas, vi muita gente do meu círculo de afeto seguir por esse caminho. Sei que é ingénuo dizer isso, mas escrever esse livro me fez sentir como se estivesse me vingando da exploração capitalista, da falta de oportunidades a que eu e o meu povo fomos submetidos, da falta de lazer, da falta de acesso aos equipamentos de cultura, da falta de dinheiro, de todas as faltas”, contou o escritor.

Para José Falero, “Os Supridores” pode funcionar como “uma denúncia ou convite à reflexão sobre a realidade do Brasil de hoje”, mas não é certo que o livro tenha sido escrito com esse propósito específico em mente.

“Não tenho certeza. Talvez eu tenha pensado nisso na época que escrevi, talvez não. É difícil ter certeza dessas coisas. Mas eu lembro que eu queria contar uma história. Isso é sempre uma das coisas mais importantes para mim: contar uma história”, acrescentou.

Esse é um desejo que vem da infância, ainda da época em que não lia e desmerecia a leitura por considerar que outras formas de entretenimento, como mangás, filmes e videojogos, eram mais completas por incluírem “imagens e efeitos sonoros”.

Foi graças à irmã mais velha que se tornou leitor, quando esta o desafiou a experimentar a ler um livro antes de criticar a leitura, pois antes disso a sua “opinião sobre os livros não merecia ser levada em consideração”.

“Eu aceitei esse desafio. Então resolvi ler um livro, só para, depois, ter o prazer de dizer para a minha irmã: ‘li um livro inteiro e não gostei’. Enfim, eu queria poder falar contra os livros com propriedade, foi por isso que eu fui ler um livro pela primeira vez. Acontece que eu gostei muito, e acabei me tornando leitor. Gostei não só do livro em particular, mas também do próprio ato de ler”.

O primeiro livro que leu foi “Besta-Fera”, uma história de lobisomens, que o marcou por lhe ter causado um medo que os filmes de terror já não lhe provocavam na vida adulta, o que atribui à força da imaginação que a leitura desperta.

“O aspeto que mais me marcou tem menos a ver com o livro em si do que como facto de ter sido o primeiro livro que li. Esse aspeto foi a própria perceção do que o texto literário é capaz. Eu lembro que, em algumas passagens, eu interrompia a leitura, completamente fascinado, e pensava: ‘isso não seria possível no videogame, nem no cinema, nem nos quadrinhos; este grande prazer que eu acabo de experimentar não poderia ser produzido de nenhuma outra maneira, a não ser através desta forma de expressão em particular, o texto escrito’”.

Quando José Falero se tornou leitor, a leitura transformou-se numa verdadeira obsessão. Já criador de histórias em forma de mangás, ficou fascinado pelo “ato de ler”, encarando-o como “um acesso direto à mente de outra pessoa”.

“Então, muito naturalmente, não demorei a ter os primeiros ímpetos de pegar as histórias que eu contava em mangás para recontá-las naquele formato incrível, que tanto me fascinava: histórias contadas só com letras e nada mais, e que convocavam a imaginação do leitor para ajudar construir tudo. Tanto foi assim que as primeiras coisas que eu efetivamente comecei a rascunhar em texto eram exatamente as histórias que eu já tinha feito em forma de mangás”.

Mas o escritor enfrentou inúmeros desafios na sua trajetória literária, reconhecendo que se tornou escritor quase por “milagre”, uma vez que cresceu num contexto social sem incentivo à leitura.

José Falero descreve a sua infância como feliz e recorda momentos marcantes ao lado da família, que era mais unida na época, com festas que reuniam parentes de várias partes, mas principalmente a sua relação com os pais e a irmã mais velha.

“É claro que, como um integrante de família negra e periférica, ao longo da infância e da adolescência também estive mergulhado em precariedades mil, em violências mil; testemunhei atrocidades que ninguém deveria testemunhar; experimentei carências que ninguém deveria experimentar; enfim, passei maus bocados. Mas, sei lá, acho que durante a infância e a adolescência atravessamos coisas assim sem se dar conta da gravidade essas coisas. Eu mesmo só consigo perceber que tudo era grave agora, olhando em retrospetiva”, admite.

Os desafios na sua trajetória literária “foram muitos e imensos”, tendo sido alvo de escárnio e desconfiança por parte de familiares e amigos, que viam a sua ambição literária como algo excêntrico e o consideravam “meio louco, meio perturbado, ou um completo motivo de chacota”, conta o escritor, confessando que “lidar com isso não foi fácil”.

Sem acesso a oficinas de escrita criativa, adotou uma aprendizagem autodidata, explorando materiais disponíveis, num esforço de anos para dominar as ferramentas da escrita.

A maior dificuldade surgiu na publicação de “Os Supridores”, recorda o autor, relatando que, ao enviar o manuscrito para várias editoras, recebeu respostas negativas ou exigências de custeio próprio, enfrentando o desafio de aprender “a ciência de como ser notado, de como garimpar uma oportunidade, de como ser levado a sério”.

Hoje é um autor premiado, reconhecido no meio e aclamado pela crítica, já com quatro livros publicados – “Mas em que mundo tu vive”, “Vila sapo” e “Vera”, além de “Os Supridores” -, mas não se deixa iludir, apesar de conseguir viver só da literatura.

“Eu tento lidar com as coisas incríveis que têm acontecido comigo mantendo os pés no chão. Alguém já disse que o fracasso e o sucesso são a mesma coisa: dois impostores. Acredito demais nisso”.