Podia construir ou destruir carreiras no mundo do cinema e da TV. Era venerado e temido ao ponto de Meryl Streep o chamar uma vez de "Deus". Passaram mais de dois anos desde que Harvey Weinstein, de 67 anos, foi denunciado por assédio, agressão sexual e violação por mais de 80 mulheres por atos que terá praticado ao longo de 40 anos.

A partir desta segunda-feira, o ex-produtor será julgado no tribunal estadual de Nova Iorque e, se for considerado culpado, poderá passar o resto da vida na prisão.

Um "monstro"

As atrizes Ashley Judd, Gwyneth Paltrow, Kate Beckinsale, Uma Thurman e Salma Hayek acusaram-no de assédio ou agressão sexual. Asia Argento, Rose McGowan e Paz de la Huerta, de violação. Mira Sorvino e Ashley Judd garantem que ele acabou com as suas carreiras porque elas não cederam ao seu assédio.

Muitas contaram que o irascível e impaciente Weinstein marcava encontro consigo em quartos de hotel, onde as recebia apenas tapado por uma toalha de banho e propunha que dessem ou recebessem massagens ou que o vissem masturbar-se.

Mas o robusto ex-produtor, de cerca de cem quilos, será julgado criminalmente apenas por duas acusações que não prescreveram: ele foi acusado de forçar a ex-assistente de produção Mimi Haleyi a receber sexo oral contra a sua vontade em 2006 e de violar em 2013 outra mulher cuja identidade permanece em sigilo.

"Durante anos, ele foi o meu monstro", escreveu a atriz mexicana Salma Hayek, ao relatar o que viveu durante as filmagens de "Frida", em 2002. Diante das suas reiteradas rejeições, Weinstein reagia com "ira maquiavélica" e ameaçava matá-la.

Das cinzas do império que construiu, nasceram movimentos como o #MeToo e o Time's Up, que incentivaram dezenas de milhares de mulheres no mundo inteiro a denunciar nas redes sociais homens poderosos que praticaram abusos ou assédio e começaram uma mudança de atitude: tolerância zero para com este tipo de conduta.

A descida aos infernos

Nova acusação contra Harvey Weinstein por violência sexual a menor em 2002

Uma grande investigação sobre a sua má conduta sexual, publicada no jornal The New York Times a 5 de outubro de 2017, somada a outra reportagem na revista The New Yorker, originaram um escândalo que acabou com a sua carreira, o seu casamento e a sua reputação.

Foi expulso da Academia de Cinema dos Estados Unidos e da sua própria empresa, a The Weinstein Company (TWC).

Em novembro de 2017, um mês depois de o escândalo vir à tona, internou-se num centro de reabilitação para tratar a dependência de sexo.

A sua segunda esposa, a designer de moda britânica Georgina Chapman, com quem teve dois dos seus cinco filhos, divorciou-se dele.

Weinstein está em liberdade após ter pago uma elevada finança. Usa uma pulseira eletrónica e permanece recluso numa casa alugada num subúrbio nova-iorquino, perto dos filhos mais novos.

As suas escapadas a Manhattan são perigosas: em outubro, várias mulheres atacaram-no num bar, chamando-o aos gritos de "violador" e "monstro" até serem expulsas do local.

No mês passado, apareceu em tribunal pálido, caminhando com um andarilho antes de ser operado às costas devido a um acidente de carro sofrido em agosto.

O rei dos Óscares

OSCARS-BEST PICTURE-SHAKESPEARE IN LOVE

Nascido em Queens a 19 de março de 1952, filho de um lapidador de diamantes, Weinstein estudou na Universidade de Buffalo e inicialmente produziu concertos de rock com o seu irmão, Bob.

Ambos cofundaram o seu primeiro estúdio de cinema, a Miramax, em 1979. Os seus sucessos incluíram "Sexo, mentiras e vídeo", de Steven Soderbergh (1989) e "A Paixão de Shakespeare" (1998), vencedor de sete estatuetas e com o qual Weinstein ganhou um Óscar de melhor filme.

A Miramax também produziu o primeiro grande sucesso de Quentin Tarantino à escala global, "Pulp Fiction" (1994) e "O paciente inglês" (1997, nove Óscares).

A Miramax foi vendida à Disney em 1993 e os irmãos deixaram a empresa em 2005 para fundar a The Weinstein Company.

Ao longo dos anos, os filmes de Weinstein receberam mais de 300 nomeações aos Óscares e arrecadaram 81 estatuetas.

O produtor chegou a ter uma fortuna pessoal entre 240 milhões e 300 milhões de dólares, que diminuiu rapidamente após cair em desgraça.

Os promotores asseguram que o acusado vendeu seis propriedades por um montante total de 60 milhões de dólares nos últimos dois anos para pagar custos legais e financiar as suas duas ex-mulheres.

A Weinstein Company declarou falência no ano passado e foi comprada pelo fundo de investimentos Lantern.

Em dezembro, Weinstein chegou a um acordo de 25 milhões de dólares com mais de 30 atrizes e ex-funcionárias que o processaram. A conta será paga pela sua antiga empresa e empresas de seguros.

Hoje, Weinstein inspira Hollywood, mas como o vilão do filme. Um longa-metragem de suspense baseada no escândalo, intitulada "The Assistant", tem estreia prevista para o fim de janeiro e está no forno outro filme com produção de Brad Pitt, que encarou Weinstein em 1995 e ameaçou matá-lo se não parasse de assediar sexualmente a sua namorada na época, Gwyneth Paltrow.

O julgamento

Estúdio cinematográfico Weinstein cancela todos os acordos de confidencialidade com mulheres que acusam Harvey Weinstein de assédio e abuso sexual

Supostas vítimas, advogadas, especialistas: uma dúzia de mulheres terá a sua parcela de protagonismo no julgamento do produtor de cinema, que esta segunda-feira.

Se for considerado culpado pelo júri e receber uma sentença de prisão, será um marco para o movimento #MeToo, que combate o assédio sexual e o abuso de poder em Hollywood e noutras indústrias - do jornalismo à gastronomia, ou à música.

Desde que o movimento surgiu após o tsunami de acusações contra Harvey Weinstein, quase todos os homens que foram acusados e perderam os seus empregos evitaram processos criminais.

O único outro julgamento criminal é o do cantor de R&B R. Kelly, acusado no ano passado de vários ataques sexuais contra jovens no início da adolescência, embora as denúncias já o assombrem há muito tempo.

O lendário comediante americano Bill Cosby foi condenado a três anos de prisão por agressão sexual em setembro de 2018. O seu processo criminal começou no final de 2015, dois anos antes do escândalo do produtor de cinema.

As acusadoras:

- Mimi Haleyi: É uma das duas supostas vítimas de Weinstein cujas denúncias de agressão sexual resultaram em processos criminais.

A ex-assistente de produção alega que o outrora homem forte de Hollywood a forçou a receber sexo oral enquanto estavam no seu apartamento em Nova Iorque em julho de 2006, apesar de ela se negar a isso reiteradamente.

"Foi totalmente não consentido", afirma Miriam Haleyi à MSNBC, lembrando que estava menstruada no momento do incidente. "Não há forma de eu quisesse que isso acontecesse", disse.

- Uma vítima anónima: A segunda vítima que levou Weinstein a julgamento criminal permanece anónima. Acusa o nova-iorquino de a violar em março de 2013 num quarto de hotel.

A defesa já enviou uma série de provas que mostrarão que esta mulher teve um relacionamento romântico sustentado com o seu suposto agressor por vários anos após os alegados eventos.

- Annabella Sciorra: A atriz, que apareceu na série "Os Sopranos", também afirma ter sido violada por Weinstein em 1993 em sua casa, depois de ser forçada a deixá-lo entrar.

Embora não tenha revelado a agressão até ao final de outubro de 2017, ela afirma que o produtor fez todos os possíveis para evitar que obtivesse papéis entre 1993 e 1995.

Os factos dos quais afirma ter sido vítima não são avaliados neste processo. Mas o seu testemunho é a chave para o julgamento, que espera provar que o ex-magnata do cinema é culpado de comportamento de 'predador sexual' ao agredir uma série de mulheres.

Se ele for considerado culpado, poderá ser condenado a prisão perpétua.

- Três outras mulheres cujas identidades são desconhecidas foram autorizadas pelo juiz James Burke a testemunhar no julgamento.

Uma delas afirma ter sido violada por Weinstein em Beverly Hills em 2013. A natureza exata dos outros dois incidentes, que ocorreram em 2004 e 2005, é desconhecida.

Assim como Annabella Sciorra, Weinstein não está a ser processado pelos eventos relatados por essas três mulheres, que só estarão lá como testemunhas.

As advogadas de acusação e defesa

- Joan Illuzi-Orbon, a promotora: assistente do promotor de Manhattan, Cyrus Vance, com mais de três décadas de experiência, vai liderar a acusação durante o julgamento.

Antes do início do julgamento, conseguiu subir a fiança a Weinstein, a quem acusou de tomar liberdades com sua vigilância eletrónica.

Em 2011, liderou a equipa que investigou Dominique Strauss-Kahn, o então diretor do Fundo Monetário Internacional, e o incidente do Sofitel. No final, recomendou a retirada dos cargos apresentados.

- Donna Rotunno, chefe da equipa de advogados de defesa: a advogada de Chicago é conhecida por defender vários homens acusados de agressão sexual e pela sua pugnacidade.

"Quando entrevisto uma mulher na audiência, posso ir muito além do que um advogado homem", afirmou à revista Chicago Magazine em fevereiro de 2018. "Ele pode ser um excelente advogado, mas se abordar essa mulher com o mesmo veneno que eu, parecerá um bandido", disse.

As especialistas

- Barbara Ziv, especialista em psiquiatria citada pelo promotor público: a médica testemunhou no julgamento de Bill Cosby. Explicou os motivos que muitas vezes levam as vítimas de agressão sexual a esperar às vezes anos para falar sobre o que sofreram.

- Deborah Davis e Elizabeth Loftus, especialistas citadas pela defesa: as duas especialistas em psicologia trabalharam com transtornos da memória em pessoas que afirmam ter sido vítimas de agressão sexual.

O público

A famosa advogada Gloria Allred, que representa duas das acusadoras de Weinstein – Haleyi e Sciorra – estará na audiência para as apoiar. Também são esperadas ativistas dos movimentos #MeToo e Time’s Up.

Embora não seja esperada a presença de nenhuma das estrelas que acusaram Weinstein de as assediar ou abusar delas, como Ashley Judd, Gwyneth Paltrow ou Angelina Jolie, algumas como Rosanna Arquette, planeiam estar presentes em algumas das audiências.

Cronologia de um caso

Mão com as #MeToo e #BalanceTonPorc escritas a caneta preta

5/10/17: o escândalo vem à tona

O jornal The New York Times publica uma grande investigação detalhando várias alegações de assédio sexual e agressão contra Weinstein ao longo de três décadas. As atrizes Ashley Judd e Rose McGowan são as acusadoras mais conhecidas.

O jornal revela que Weinstein chegou a acordos financeiros com pelo menos oito mulheres para guardarem silêncio sobre os abusos.

"Percebo que a maneira como me comportei com colegas no passado causou muita dor e lamento profundamente", disse Weinstein.

O seu advogado afirma que o ex-produtor "nega muitas das acusações, que são totalmente falsas".

O conselho de administração da produtora de filmes Weinstein Company, da qual o magnata controla com seu irmão Bob, é forçado a demiti-lo alguns dias depois.

10/10/17: Primeira acusação de violação

A atriz e realizadora de cinema italiana Asia Argento diz à revista The New Yorker que Weinstein a violou em 1997. Duas outras mulheres também o acusam de agressão sexual.

Gwyneth Paltrow, Angelina Jolie e Rosanna Arquette unem-se à lista de mulheres que denunciam Weinstein por assédio.

Uma porta-voz de Weinstein indica que o produtor nega todas as acusações.

14/10/17: Expulso da Academia

O conselho da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, instituição que concede os Óscares, vota pela expulsão de Weinstein, cujos filmes ganharam dezenas de estatuetas ao longo dos anos.

A medida que passam as semanas, mais mulheres decidem revelar publicamente que foram assediadas por Weinstein, tanto nas redes sociais como diante das câmaras de televisão.

Outros nomes ilustres de Hollywood e de várias áreas do entretenimento nos Estados Unidos, além do jornalismo, são denunciados por assédio sexual. O movimento #MeToo ganha força.

25/5/18: Weinstein é acusado formalmente

É revelado que os promotores que cuidam do caso em Nova Iorque arquivaram uma investigação contra Weinstein sobre assédio em primeiro e terceiro graus contra uma mulher não identificada em 2013, assim como de obrigar a aspirante a atriz Lucia Evans a fazer sexo oral em 2004.

Weinstein comparece diante de um juiz num tribunal de Manhattan após se entregar à polícia, seguido por dezenas jornalistas e fotógrafos.

O seu advogado à época, Ben Brafman, negocia uma fiança de um milhão de dólares e garante que o seu cliente será declarado inocente. Weinstein passa a usar uma pulseira eletrónica para ficar em liberdade.

2/7/18: Uma nova acusadora

A promotoria acrescenta três novas acusações por um ato sexual "forçado" em julho de 2006 contra uma terceira mulher, a assistente de produção Mimi Haleyi. Weinstein agora enfrenta um total de seis acusações e pode ser condenado a prisão perpétua se for considerado culpado.

11/10/18: Abandono de acusações

A promotoria decide abandonar as acusações relacionadas a Evans após revelar que a acusadora contou a uma amiga que praticou sexo oral de maneira voluntária em Weinstein em troca de um papel como atriz.

25/1/19: Mudança de advogados

Weinstein demite o seu famoso advogado Ben Brafman e contrata dois novos defensores. Seis meses depois, ele também dispensa a dupla e contrata uma equipa liderada por uma mulher, a advogada de Chicago Donna Rotunno.

26/8/19: Uma nova acusação

Os promotores apresentam uma nova acusação que permitirá que a atriz da série "Os Sopranos", Annabella Sciorra, participe do julgamento como testemunha de acusação.

Sciorra afirma que Weinstein a violou no fim de 1993 e no início de 1994 em Manhattan. O seu caso está prescrito, mas os promotores esperam que a sua história ajude a convencer o júri de que Weinstein era um predador sexual.

O julgamento, originalmente marcado para setembro, é adiado para 6 de janeiro de 2020.

11/12/19: Acordo

Weinstein chega a um acordo de 25 milhões de dólares com mais de 30 atrizes que o acusam de assédio e abuso sexual, numa ação coletiva não ligada ao seu julgamento.

O acordo estipula que Weinstein não tem que admitir nenhuma culpa.

Alguns dias depois, o ex-produtor concede uma entrevista invulgar ao New York Post, quando recuperava num hospital de uma operação às costas. Na conversa, diz que o mundo esqueceu que ele foi um "pioneiro" na promoção de mulheres no cinema, o que causa indignação.