Trata-se da segunda criação da companhia anfitriã do Festival de Almada que se estreia nesta 38.ª edição do certame, no ano em que a CTA assinala 50 anos, e é um texto e uma encenação do diretor da companhia.

Rodrigo Francisco, que desde há três anos tem “lido muito, estudado muito e feito muitas entrevistas” sobre a Guerra Colonial, escreveu este texto porque, apesar de ter assistido a alguns espetáculos de teatro português que falam deste tema, “nunca ficou inteiramente satisfeito com a forma como a perspetiva dos ex-combatentes portugueses era tratada”, disse à agência Lusa.

Porque “as abordagens não proporcionavam a atenção que estes homens merecem por parte da sociedade [portuguesa]”.

Num contexto em que muitos destes temas são tratados, “muitas vezes de forma muito aguda, muito polémica, creio que é uma oportunidade para refletir, para olhar para a história, para ter dados históricos e para perceber o que é que se passa com estes homens que estão a chegar ao limiar das suas vidas e de que forma é que encaram esse passado de participação na guerra colonial”, frisou.

A Guerra Colonial não é, todavia, um assunto que tenha tocado a família do encenador: “Talvez por isso” só agora se tenha debruçado sobre o assunto, admitiu.

A escrita da peça surgiu por acaso ao diretor da CTA quando, uma tarde, estava no teatro e “um senhor que colabora com o teatro, mas não faz parte da companhia” lhe disse que tinha acabado de se divorciar.

“Era um senhor de 71 anos e eu pedi-lhe que se sentasse e que conversássemos um bocadinho”, contou.

Ficaram os dois a conversar uma tarde toda, com o homem - ex-combatente - a falar sobre a sua experiência na Guerra Colonial. Até que Rodrigo Francisco começou a interrogar-se: “Este homem está a divorciar-se de quem? Está a divorciar-se da sua mulher ou está a divorciar-se das suas memórias?”.

Até que o ex-combatente percebeu que o encenador estava interessado no assunto e convidou-o para participar no almoço em que ele e os seus companheiros de guerra comemoravam o cinquentenário da partida do batalhão em que combatera em África.

“E aí contactei com uma realidade que me era bastante estranha e, sobretudo, pus-me a perguntar por que é que às pessoas da minha geração, que nasci no início dos anos 1980, nunca lhes foi contada esta história”, acrescentou Rodrigo Francisco.

Para Rodrigo Francisco, “está na altura de falar destes temas, mas falar de uma forma inteligente e não aos gritos”, como tem assistido.

Uma realidade que vê escamoteada por ser complexa, porque os ex-combatentes “são vítimas, mas muitos destes homens também cometeram crimes”.

“O que parece é que nós nunca podemos tentar simplificar uma coisa que em si mesma é complexa; e os espetáculos de teatro a que eu assisti sobre este tema simplificavam muito as questões”, observou, alertando para a necessidade de “algum estudo por parte da geração a que pertence”.

Para o encenador e diretor da CTA, dizer que “o conflito colonial era uma coisa de pretos contra brancos é uma adulteração da verdade histórica”, sublinhando que a guerra “não era uma questão racial”.

“É claro que os africanos eram cidadãos de segunda, isso nunca está posto em causa, mas a realidade é muito mais complexa do que a forma como muitas vezes somos tentados a olhar para ela num sistema binário de sim e não", concluiu.

Porque muitos dos ex-combatentes “eram pessoas que não tiveram acesso à educação, foram mandados combater sem perceberem o que estava a acontecer e por isso não podem ser julgados com os olhos de hoje em dia, com os valores de hoje em dia”, declarou.

Na peça “Um gajo nunca mais é a mesma coisa” fala-se também de um crime específico, que aconteceu, está documentado e em que a pessoa que o praticou escreveu um livro sobre o acontecimento.

“Isso não é escamoteado, é dito muito claramente”, acrescentou o encenador, sublinhando que o que se faz na peça é “tentar perceber por que é que isso aconteceu”.

Com cenografia de Céline Demars e figurinos de Ana Paula Rocha, a peça tem interpretação de Afonso de Portugal, que também assina a música, João Farraia, Luís Vicente, Pedro Walter e Lara Mesquita.

Com luz de Guilherme Frazão, “Um gajo nunca mais é a mesma coisa” é uma produção da CTA e da ACTA – A Companhia de Teatro do Algarve e está em cena de 14 a 18 e de 21 a 25 deste mês, no palco da sala Experimental do Teatro Municipal Joaquim Benite.

“Ri-te, ri-te que logo choras”, o espetáculo de honra escolhido pelo público em 2020 e que regressa este ano ao certame e “A Lua vem da Ásia” são outras das peças de teatro integradas no 38.º Festival de Almada que também sobem ao palco na quarta-feira.

Com 21 produções, num total de 108 sessões, o 38.º Festival de Almada termina a 25 de julho.

O certame decorre em sete espaços, cinco do concelho de Almada, no Teatro Nacional D. Maria II e no Centro Cultural de Belém, em Lisboa.