“Este dueto com a minha mãe está a ser preparado há dez anos, quando ela começou a ter os primeiros sinais de demência”, recordou o coreógrafo, em entrevista à agência Lusa sobre o espetáculo que se estreia na terça-feira e que ficará em cena no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, até quinta-feira.

A partir da sua experiência pessoal e familiar, o artista quis abordar o tema da degenerescência mental, “que, infelizmente, faz cada vez mais parte das vivências” de muitas pessoas em todo o mundo.

Na sequência de um convite do Teatro do Bairro Alto, há um ano, colocou a hipótese de subir ao palco com a mãe, de 87 anos, “porque ela gosta muito de dançar”, disse o também intérprete que trabalhou, entre outros, com os coreógrafos Vera Mantero, Francisco Camacho e Filipa Francisco.

O processo degenerativo de Miquelina, mãe de Miguel Pereira, tem provocado ao coreógrafo sentimentos contraditórios: "Por um lado, o medo da degradação das suas faculdades, e, por outro, o permitir-me aceder a um novo patamar de entendimento, que se situa algures entre a loucura, a ternura e a cumplicidade”.

“Hoje olho para a minha mãe e reconheço-me mais do que nunca. O imponderável, essa loucura que por vezes me assalta, a vivência do fracasso e do ridículo, marcas que, sem saber, transportava vindas dela, e que, só agora, à luz da degenerescência progressiva da sua memória, posso ver e entender”, apontou, sobre os sentimentos mistos ou até antagónicos, que uma perda tão importante provoca.

O coreógrafo tentou transportar este enquadramento para o espaço cénico, “com todos os cuidados”, para que Miquelina se sentisse confortável, “e mais pela relação lúdica, de prazer e divertimento” entre ambos.

“Tem sido um processo muito complexo mas também muito rico”, disse à Lusa, sobre um tema delicado, a memória, ligado intimamente à identidade de cada um.

Miguel Pereira considera que “a memória é sempre um lugar: nós somos a nossa memória”.

“A minha mãe esquece coisas, deturpa coisas temporais e espaciais. Eu próprio, como artista, penso muito na memória. Em palco, tento recuperar [com Miquelina] o que foi feito no dia anterior, tendo uma estrutura de base. Mas tento também deixar de lado o controle, abrir um espaço”.

No espetáculo, “há muita improvisação, com algo que surge de repente, um movimento, uma música”, avança o criador que participou na peça e no filme “António, Um Rapaz De Lisboa” do encenador e realizador Jorge Silva Melo (1948-2022), trabalhou com Jérôme Bel em “Shirtologia (Miguel)” (1997), e foi intérprete em “Les Inconsolés”, de Alain Buffard, na remontagem da peça em 2017.

Neste encontro com a mãe, em palco, num misto de trágico-cómico, de delírio e carinhoso a dois, surge também a dança, o absurdo e a fragilidade, “celebrados num espaço de liberdade sem limites, numa tentativa de contrariar o tempo e escapar ao inevitável”.

O coreógrafo admite que, além de criar um objeto artístico com o espetáculo, quis prestar uma homenagem à mãe, nascida em 1935, “uma pessoa muito ativa e curiosa, com sentido de humor”.

“Sei que é um espetáculo de grande risco, mas também tem muita força, ao mesmo tempo”, sublinhou, acrescentando que lhe interessa, no seu trabalho, “desmontar as carapaças e mostrar a força e a fragilidade da vida”.

O espetáculo tem direção artística de Miguel Pereira, com interpretação do próprio artista e de Miquelina da Costa Frederico, desenho de luz e sonoplastia de Hugo Coelho, numa produção O Rumo do Fumo, em coprodução do Teatro do Bairro Alto e apoio dos Estúdios Victor Cordón.

Como criador, Miguel Pereira assinou “Antonio Miguel”, peça com a qual recebeu o Prémio Revelação José Ribeiro da Fonte do Ministério da Cultura e uma menção honrosa do prémio Acarte/Maria Madalena Azeredo Perdigão (2000), “Notas Para Um Espetáculo Invisível” (2001), "Data/Local" (2002), “Corpo de Baile” (2005), “Karima meets Lisboa meets Miguel meets Cairo”, numa colaboração com a coreógrafa egípcia Karima Mansour (2006).

“Doo” (2008), “Antonio e Miguel”, uma nova colaboração com Antonio Tagliarini (2010), “Op. 49” (2012), “WILDE” (2013), uma colaboração com a Mala Voadora, “Repertório para Cadeiras, Figurinos e Figurantes” (2015), para o Ballet Contemporâneo do Norte, “Era um peito só cheio de promessas” (2019) e “Falsos Amigos” (2021), em colaboração com Guillem Mont de Palol, são outras criações do seu percurso.

O seu trabalho tem sido apresentado em toda a Europa, Brasil, Uruguai e Chile, e é professor convidado em diferentes estruturas nacionais e internacionais.

Desde 2000, convidado por Vera Mantero, é artista associado da estrutura O Rumo do Fumo.

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