Passaram-se quase 20 anos desde a edição de “Expresso do Submundo”, álbum que marcou indubitavelmente a história do hip hop nacional. Canções como a faixa-título, “O Quinto Elemento” e “Inspiração” alcançaram o estatuto de culto na matéria, colecionando aplausos e vénias por parte de praticantes e admiradores do movimento. O Palco Principal entrevistou Mundo Segundo, membro dos Dealema, a propósito da edição de “Segundo o Ancião”, o seu mais recente episódio a solo, numa conversa que, apesar de se focar no presente, não evitou uma viagem ao passado, a bordo do grandioso clássico de 96. “É um álbum muito diferente”, constatou o artista já no final da entrevista, “basta analisar os discos dessa altura, ver o que se fazia e perceber que aquele disco era qualquer coisa mesmo fora do prato. A nossa ideia de escrita era muito diferente. Na altura usava-se um rap muito político, em forma de sátira. O que nós fizemos foi levar a coisa para um campo espiritual, mais expansivo, quase de culto”.

Apesar de ser MC e produtor, Mundo Segundo deu os seus primeiros passos na cultura hip hop como b-boy. Atualmente, apesar de já não praticar, o músico continua a acompanhar o estilo de perto. "Adoro campeonatos de breakdance, encontros de grafitis, concursos de DJ’s. Se puder e se tiver tempo, faço sempre questão de ver. Sou um fanático das quatro vertentes", constatou o autor de "Sólida Oportunidade de Mudança", refletindo, pouco depois, sobre a importância do movimento na sua vida: "O hip hop moldou o meu lado intelectual. Desde que oiço hip hop que me considero uma pessoa mais rica a esse nível. Abriu-me portas para outros mundos que eu não explorava. Apresentou-me outros universos musicais, como o soul e o funk, estilos que eu desconhecia. Levou-me a conviver com pessoas de outras culturas. Permitiu-me ter uma profissão da qual gosto e que me dá prazer. Acima de tudo, o hip hop fez de mim uma pessoa mais completa. Todos precisamos de algo que nos guie para termos uma disciplina na vida. Foi isso que o hip hop me fez. Guiou-me".

É bem sabido que é preciso esforço e dedicação para conseguirmos alcançar os nossos sonhos - disso não há dúvida. As coisas não caiem do céu e ninguém dá nada de mão beijada. Consciente disso, Mundo dedica grande parte do seu tempo à música, lutando diariamente para alcançar os seus objetivos. "Há oito anos que vivo em função da música", contou o artista, "todos os dias acordo e vou fazer qualquer coisa nesse sentido. Não tenho um horário fixo, como num trabalho normal, mas tento fazer todos os dias algo de produtivo, que passa por gravar uma música, escrever uma letra, fazer um beat, marcar entrevistas, dar concertos... Fazer algo que seja um passo mais à frente daquilo que fiz ontem".

No ano passado, os Dealema lançaram "Alvorada da Alma", um disco que deu uma nova vida ao quinteto, principalmente através do single "Bom Dia", quebrando com o lado mais obscuro e sombrio de "A Grande Tribulação", o álbum anterior. "Eu já tinha o meu disco a solo quase todo feito, quando lançámos o de Dealema, mas preferi não precipitar o seu lançamento, para que as coisas não acontecessem umas em cima das outras. Comecei a trabalhar neste disco em 2007, mal acabei o meu primeiro. Fui compilando músicas e acabei por escolher aquelas que se encaixavam melhor no conceito que eu queria", explicou.

A vida e obra de Mundo Segundo - um relato na primeira pessoa

Em "Segundo o Ancião", Mundo fala sobre si e sobre as suas experiências pessoais no seio do hip hop. Mas não só. O artista traz-nos um conjunto de histórias com tamanho detalhe e precisão, que, às tantas, acaba por escrever a sua autobiografia. “Eu queria que este disco vivesse mesmo disso. Que fosse um conjunto de histórias da minha vida, de forma a dar-me a conhecer aos ouvintes. O meu lado mais introspetivo, pessoal, etc. É como se fosse um cartão-de-visita. E é, ao mesmo tempo, a perspetiva de alguém mais velho dentro do hip hop”, conta. Uma longevidade que o coloca em posição privilegiada para analisar passado, presente e futuro do movimento. “Eu vi quando a cultura evoluiu, também assisti quando parte dela ruiu”, canta músico em “Sou do Tempo”, canção que coloca a velha e a nova escola em exame. “Este ruir não surge de forma depreciativa”, deixa bem claro, “surge como nostalgia desses tempos. De bandas que nasceram, cresceram e desapareceram, deixando uma enorme saudade, como é o caso dos Micro. Eram uma peça essencial no tabuleiro”, conclui.

Mundo Segundo é o principal arquiteto dos Dealema a nível produtivo. A esmagadora maioria dos instrumentais do coletivo nasceu pela sua mão, pela sua vontade. Toda a sua carreira tem sido dividida entre os cadernos de linhas e o equipamento eletrónico, entre os versos e os compassos. É por isso normal que uma canção como “Raio de Luz”, uma verdadeira homenagem àqueles que passam horas, dias, semanas fechados em casa a criar bases para os MCs rimarem (“a todo o criador, solitário que produz”), ganhe o destaque de single no disco.

Depois destes anos todos, Mundo ainda se consegue recordar dos utensílios que utilizou para cozinhar o seu primeiro instrumental. “Ainda não tinha computador. Usei dois órgãos da Casio. Um deles era sampler, e o outro tinha um banco de sons de bateria. Lembro-me que alguns beats até sairam fora de tempo, pois não tinha forma de sincronizar os dois instrumentos. Era um processo engraçado”, recorda, acrescentando: “O primeiro software que utilizei foi o FastTracker 2. Foi-me oferecido por um amigo que produzia house. Fiquei com curiosidade e comecei a trabalhar nele. Já dava para sequenciar, fazer loops, samplar pedaços de músicas com um interface totalmente diferente - já te deixava manipular as coisas de uma outra forma”. Ironicamente, “Virtudes e Defeitos” é o único instrumental que Mundo assina em “Segundo o Ancião”. A explicação é simples: “Como vivo muito no meu mundo, e como o meu primeiro álbum já tinha muitos instrumentais meus, decidi procurar diferentes produtores para partir em busca de outras paisagens. Assim trago uma sonoridade diferente ao disco, foco-me apenas na escrita, e entrego essa parte a pessoas em quem confio”.

“O homem + Rico do Mundo” talvez seja o tema que mais se destaca em todo o álbum. A introdução é feita ao som de um mítico discurso de Bob Marley, que nos explica qual o seu verdadeiro conceito de riqueza, o instrumental é produzido por Madcutz, e as rimas ficam por conta de Mundo e Maze. Juntos, os dois rappers partem numa viagem por metáforas relacionadas com a temática, colocando em xeque o discurso de ostentação que muitas vezes caracteriza o hip hop, principalmente aquele que nos chega do outro lado do atlântico. “Riqueza a valer é saúde e saber”, diz-nos Maze no segundo verso. "O Homem + Rico do Mundo repete-se no final do álbum, mas desta vez em versão acústica. Mundo
Segundo explica-nos oporquê deste pleonasmo: “A versão acústica nasceu quase por acidente. Um dia estava no estúdio a exportar as pistas, fiz um solo nos samples e nas vozes, e gostei do resultado. Pensei que seria capaz de ficar engraçado. Mostrei ao meu baterista, ele gostou do que ouviu, e acabou por ser ele a fazer os arranjos orquestrais. Quando me mostraram o produto final, achei que fazia todo o sentido incluir o tema no disco”.

“Segundo o Ancião” está mergulhado num mar de musicalidade diferente do disco anterior, começando nos instrumentais, com uma orgânica muito soul, passando pelos arranjos, com uma componente humana, e acabando na própria vocalização de Mundo Segundo, que em certas partes arrisca explorar outras margens. “Eu sempre fui um pouco «musicado», por assim dizer. Isso tem uma explicação: para além do meu irmão ser músico, o meu pai cantava fado. Ou seja, sempre houve música na minha vida. Só que eu fumei durante muitos anos, e nunca me arrisquei a cantar – não me sentia à vontade com a minha voz. Sentia-me limitado. Hoje em dia, como já não fumo, já não sinto essa barreira. Sinto confiança. E já consigo usar o meu instrumento vocal de outra forma”, confessa.

Mundo optou por se fazer acompanhar por uma banda na altura de se apresentar ao vivo. “Bateria, teclas e baixo", descreve, "visto o meu hip hop não viver tanto de guitarras, não faço uso delas. A própria bateria não é acústica. É uma bateria digital com sons de hip hop «trigados», para não soar a bateria de rock. Não é isso que eu procuro. Procuro fazer um hip hop tradicional. O resultado final acaba por ficar mais orgânico, sem nunca perder a matriz original”. Quanto a problemas de ambientação com esta nova faceta, o músico garante: não houve nenhum. “Nós começámos a ensaiar cinco meses antes do álbum sair para a rua. Eu tinha as músicas já feitas, o que deu origem a um processo interessante. À medida que íamos tocando os temas do disco, os próprios músicos iam adicionando coisas ao material que já existia. Resultado: acabei por regravar todos os baixos e por fazer arranjos de teclas em quase todas as músicas. Por isso, depois destes cinco meses de ensaios, já conseguimos chegar ao palco com um outro à vontade. Já não há esse choque”, garantiu.

Episódios a não perder

Ainda agora "Segundo o Ancião" chegou às lojas e Mundo já pensa no futuro. "Ficar parado é morrer", já dizia o ditado popular. Na manga, em fase de mistura, está um projeto com o rapper brasileiro Vinicius Terra e o DJ português Nelassassin: "O disco foi quase todo gravado no verão passado", explica Mundo, "na altura estava no Brasil, no festival Terra do Rap, e surgiu a ideia de fazermos um projeto que incluísse um rapper português e um brasileiro, e ao mesmo tempo só samplarmos coisas portuguesas e brasileiras. Era esse o conceito. Queríamos trazer um pouco desse festival, dessa convivência de culturas, para as texturas da música. Começámos a fazer uma coisa que não é nem EP nem álbum, está num limiar, e agora estamos nessa fase de mistura. Vou participar na edição deste ano do festival, vamos aproveitar para apresentar o projeto ao vivo e gravar um ou dois vídeos".

Mas o músico não se fica por aqui. No final deste ano, início do próximo, Mundo vai lançar um álbum em conjunto com Sam The Kid. "Já gravámos mais de meio disco. Temos sete ou oito músicas consolidadas", adianta, continuando: "É um disco produzido pelos dois, em conjunto – tentamos que haja sempre a presença de ambos na parte dos arranjos. Posso dizer que vamos ter convidados de peso. Terá nomes internacionais do rap, nomeadamente americanos. Vai ser um disco de rap. Puro. Não nos vamos lançar em voos extraordinários. Vamos beber do hip hop tradicional, a nível de beats e rimas. É isso que as pessoas querem".

Manuel Rodrigues