
A noite fria de sábado à noite fazia prever que nem todos os entusiastas pela música de Miguel Angelo e companhia saíssem de casa e caminhassem pelo vento glacial até ao concerto do ex-vocalista dos Delfins no Centro Cultural de Ílhavo. Prometido para as 22h00, o espetáculo começou sem atrasos, embora a sala de espetáculos tivesse casa meia cheia.
Miguel Angelo entra em palco e a sua guitarra acústica abre o alinhamento com o tema Boa Noite, recebido com tímidos aplausos das mãos enregeladas do público, cujo coração continuava por aquecer. Mas o entusiasmo da plateia não demorou muito tempo a ser ouvido, logo após a mensagem de boas vindas oriunda do palco. Precioso foi o segundo tema do alinhamento, com as vozes que batiam nas paredes da sala do CCI a entoarem “É o amor, precioso”. De notar que a voz de Miguel Angelo se mantém inconfundível, com aquele arrastar da última sílaba que nos prende ao passado e que nos mostra um otimismo que só ele sabe cantar.
As palavras “Estou a solo agora, mas não deixo de ter uma família na estrada” antecederam a apresentação da banda que agora conta com Rui Fadigas e com os seus longos cabelos no baixo; com Mário Andrade, que, ao longe, faz lembrar Miles Kane, seja pelo seu corte de cabelo, seja pela guitarra com o Union Jack estampado, na guitarra; com Rogério Correia, cuja guitarra de 12 cordas soava mais alto do que uma elétrica a rasgar; e com Samuel Palitos, baterista dançante que melodiava todas as letras que Miguel nos cantava.
Boa Onda foi, então, iniciada com um jogo de luz suave, ritmado e alternado entre sombras e contra-luz (nunca antes tínhamos visto um técnico de luzes tão entusiasmado e apaixonado pela tarefa que desempenhava – em frente àquela mesa de programação dançava-se, batia-se o pé e moviam-se braços, e que admirável que era!). Seguiu-se Fica aqui comigo, com o violino de Dalila Marques a soar a romance.
Para quem não sabe, Miguel Angelo tem formação académica em arquitetura, o que o leva, a par e passo, a tecer comentários pormenorizados sobre as salas por onde passa. Esta não foi exceção, com o músico a partilhar com os presentes que, apesar daquela ser uma das suas casas favoritas, as casas de banho não tinham porta, mas sim uma cortina – um exemplo mais do que perfeito para exemplificar o edifício bruto e modernista numa cidade que tenta, a todo o custo, despir-se de complexos.
Entre os temas do “Primeiro” álbum pós-Delfins, apareceram os inevitáveis e apetecíveis clássicos dos 25 anos de carreira de uma das mais bem sucedidas bandas portiguesas: a Não vou ficar seguiu-se Num sonho teu – uma combinação ao vivo que funciona em parelha desde 1997. A voz do público ganhou, finalmente, corpo. Ainda no revival dos anos 90, foi-se buscar ao baú o tema Só eu te posso ajudar, feito de encomenda para o filme “Zona J”, de Leonel Vieira.
A performance mais intimista do espetáculo conduziu a Sim, onde o músico ensinou os versos chave da “canção mais simples do álbum”. Sobre a palavra assertiva, comentou “Quando perguntaram ao John Lennon por que é que se tinha apaixonado pela Yoko Ono, lembro-me que a resposta dele falava sobre uma exposição da Yoko, em que tudo era branco e onde numa das salas havia apenas um escadote e uma lupa pendurada no teto, ao qual as pessoas subiam. Ao olharem pela lupa em direção a um pequeno ponto, liam a palavra ‘sim’… Tão simples quanto isso. E depois já sabemos onde a história foi dar”, arrancando um sorriso coletivo da cara dos ilhavenses e conterrâneos.
Em Os meus pés a andar ouvem-se os passos tomados pela voz do músico de Cascais, aos quais se juntam os passos pelo palco que guiam a música, a sua dinâmica e explosão folk. Gás raro tem um jogo de luzes tão magnífico que faz sobressair o fato clássico cinzento claro de Miguel Ângelo, que, de guitarra em punho, executava movimentos que Elvis Presley iria gostar de ver.
Com Aquele Inverno foi tempo de introduzir a fase introspetiva do concerto, com a lembrança de que, “às vezes, os portugueses têm problemas em lidar com o passado presente”, e com o revisitar das inspirações por detrás deste clássico dos Delfins – uma visão individual dos músicos sobre a Guerra Colonial. Para cortar o espírito saudosista, Rui Fadigas deixa a sua postura reservada e puxa de um iphone que usa para tocar e comandar Mareou, ato a que muitos responderam com entusiasmo e com um expectável “modernices”.
Em tempos, e devido a uma brincadeira que Miguel Angelo levou avante, ficou a pensar-se que o disco “Primeiro” havia sido pré-produzido nos Estados Unidos, quando, na verdade, a única coisa que havia nos Estados Unidos era a casa de Rogério Correia, situada nessa avenida lisboeta. No final de Um Dia Perfeito, percebe-se que a arte consegue “mostrar uma luz que a política e a economia não conseguem atingir”.
O ponto alto da noite aconteceu ao som de Um Lugar ao Sol, com Sou como um rio, logo a seguir, a fazer soltar palmas, agora com o coração nas mãos, com as memórias a latejar na cabeça e com os primeiros passos de dança assumidos. O concerto termina com À Espera e uma consequente ovação em pé, que começou ainda os músicos não tinham dado descanso aos seus instrumentos.
O pedido de encore foi irresistível e, para o regresso a palco, foi escolhida Casa dos Sonhos, uma das mais belas canções de “Primeiro”, com um violino a arrancar, sublimemente, cada recordação.
“Voltámos às canções dos anos 90 e esta é para cantarem connosco – não pode ser só o Grândola Vila Morena” foi a introdução a Nasce Selvagem que, com a sua carga histórica e querida dos portugueses, adiantou o final de uma noite preciosa na cidade de Ílhavo. Precioso foi o despedir de mais um espetáculo da digressão a solo (mas bem acompanhado) de um dos eternos músicos da pop feita em Portugal.
Alinhamento:
Boa noite
intro
Precioso
Boa onda
Não vou ficar
Num sonho teu
Só eu te posso ajudar
Sim
Os meu pés a andar
Gás raro
Aquele inverno
Mareou
Um dia perfeito
É contigo
Um lugar ao sol
Sou como um rio
À espera
A casa dos sonhos
Nasce Selvagem
Precioso
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