Noite mágica em Sintra, que começou com King Creosote e Jon Hopkins a bordo de um pesqueiro em águas escocesas, e terminou com John Grant a comer gelados no Michigan, com a voz à beira do precipício.

King Creosote & Jon Hopkins

Uma curta introdução. King Creosote e Jon Hopkins são como que o Bonnie & Clyde da folk. Creosote, cantor, guitarrista e homem de letras, é a figura patriarcal por trás dos Fence Collective, praticantes de um estilo musical na senda do que lá fora se convencionou chamar de low-key – canções afetadas com grande peso emocional, delírios românticos agridoces, passeios de bicicleta, conversas de café e um amor às cidades pequenas que elegeram a “câmara lenta” como o andar primordial; Jon Hopkins é um músico a roçar o génio: tem a escola toda do London´s Royal College of Music e, recentemente, colaborou com gente como os Coldplay ou Brian Eno, colorindo espaços sonoros com os seus teclados e efeitos sonoros.

Quando saiu a lista dos nomeados para o Mercury Prize deste ano, muitos olharam de lado quando, entre nomes como os de Adele, PJ Harvey, Anna Calvi ou Elbow, encontraram esta estranha parelha. Porém, depois de alguma pesquisa e dese terposto os ouvidos em “Diamond Mine”, percebeu-se que estávamos diante de uma gema sonora, um genuíno trabalho de amor que, segundo King Creosote, é “uma banda sonora para uma visão romântica da vida de uma cidade costeira da Escócia”.

E foi a Escócia rural que King Creosote e John Hopkins trouxeram ontem à noite a Sintra, tocando na íntegra as sete pérolas que fazem parte de “Diamond Mine”: começando com uma conversa de café onde se fazem pedidos e se pedem recibos – “First Watch” – e terminando com a magnífica “Your Young Voice”, onde uma voz cristalina canta – triste mas agradecidamente – “It's your young voice that's keeping me holding on | To my dull life, to my dull life”.

Nas mãos de Jon Hopkins, a folk sem adornos de Creosote ganha uma magia (sobre)natural, que faz com que sintamos a brisa do mar escocês – sensação ajudada pelo ar condicionado que parecia estar regulado para graus negativos –, que ouçamos as gaivotas palrar antes de uma caçada ou que sintamos a azáfama de um pequeno porto piscatório. Hopkins é assim como que o Danger Mouse da folk, um Nicolas Jaar em modo acústico, que consegue conferir ainda mais beleza a algo já de si naturalmente belo. Pelas suas mãos passam o piano, o órgão, os teclados dados a samplers e um magnífico harmónio.

King Creosote elogiou o nosso verão que (até a nós) parece eterno, confessou estar deliciado com a nossa mousse de chocolate e fez notar que apenas os vegetarianos poderiam ter razões de queixa numa viagem até à lusitânia.

Para lá das canções de “Diamond Mine” pudemos ouvir alguns temas do já longo percurso de Creosote, como “Not One Bit Ashamed”, “Cockle Shell”, “And The Racket They Made” ou “Spokes”, tema onde Creosote encaixou a bela Sintra e cantou “being in Sintra with my portuguese friends is all that i wanted to do”. Acabaram com a magnífica “My Favourite Girl”, deixando os corações em estado elevatório.

Depois de 40 discos editados, King Creosote encontrou um parceiro musical de excelência que insuflou nova vida à sua folk. Quanto a nós, rezamos pela descoberta de mais minas com diamantes deste calibre.

John Grant

A história de John Grant é a de uma Cinderela moderna. Imaginem um gay do midwest americano, criado num ambiente homofóbico, onde as igrejas crescem como cogumelos, e que se refugia nas drogas numa inquietante busca pela aceitação até ficar a um pequeno passo do suicídio.

E o príncipe (perguntam vocês)? Pois bem, nesta história ele dá pelo nome de Midlake, banda folk americana que, quando se encontrou com a voz de barítono de Grant, decidiu arrastá-lo até ao seu estúdio em Denton para gravar a solo.

O resultado foi “Queen of Denmark”, disco de baladas inocentes e amores perdidos onde, entre muitos cenários, damos de caras com Sigourney Weaver a matar Aliens como gente grande. Esta rodela sonora, docemente romântica e carregada com o humor do mais negro que se pode encontrar por aí, foi eleita o melhor disco de 2010 pela respeitadíssima "Mojo".

Usando a gíria futebolística, e a julgar pela estrondosa receção que Grant teve quando pisou o palco do Centro Cultural Olga Cadaval, este parecia um jogo ganho antes do pontapé de saída. Quando Grant abre a boca para dizer “Obrigado. All I could say is “UAU” as long as Sintra goes”, aí já estaríamos a pensar numa goleada das antigas.

Porém, o que se viu foi um John Grant com a voz à beira do precipício, que preferiu embarcar num concerto de risco a tomar a fácil opção de cancelar a coisa. E a sorte foi toda nossa, pois este veio a revelar-se um momento intimista onde a voz de Grant viajou do modo barítono ao quase sussurro. Um concerto feito de grande entrega e profissionalismo que contou com muito humor e muita – e boa – conversa.

Antes de se lançar aos temas de “Queen of Denmark”, acompanhado em palco por um teclista – “a talented motherfucker” – que com ele dividia o piano e os sintetizadores, Grant apresentou dois temas que farão parte do novo disco – “I don´t have to”, que conta o recordar confuso e desfasado de uma relação e que soa a música de fim de baile com corpos abraçados em estado de alcoolemia avançada, e “Vietnam”, descrito desta forma: “no more love songs. I´m tired of relationships. It´s gonna be very dark”.

Dos temas de “Queen of Denmark”, esse disco romanticamente negro, Grant contou-nos algumas das histórias que a eles deram origem.

“I Wanna Go To Marz”, por exemplo, nasceu numa casa de gelados artesanais do Michigan chamada “Marz”, um atalho para um nome de família italiano – qualquer coisa como Marzeda – a que Grant costumava ir para se deliciar com Green Rivers. Grant contou que voltou à geladaria 30 anos depois e que foi atendido pela mesma senhora, que lhe passou para as mãos um menu que parecia ter quarenta anos de idade. Foi desse menu que Grant retirou todas as linhas da letra da canção, que começa assim: “Bittersweet strawberry marshmallow butterscotch”.

“Fireflies” nasceu a partir de três retratos instantâneos tirados na infância: a irmã a apanhar borboletas; o avô a deitar fogo a um ninho de vespas e a pôr os olhos de toda gente a lacrimejar; as visitas de Grant a um cemitério perto de casa onde observava uma campa, imaginando quem seriam os donos daqueles rostos que repousavam a sete palmos.

Ou ainda que “Queen of Denmark” foi escrito nas traseiras de um carro, numa fase da vida em que Grant queria mandar toda a gente a um sítio feio, o qual nãopode aqui ser transposto em palavras.

Em “Where Dreams Go To Die”, Grant fez utilização do vocoder, o que pareceu confirmar uma imagem parva que nos tinha vindo à imaginação no outro dia: John Grant é o Darth Vader do universo romântico.

“Outer Space”, tema que Grant confessou ter escrito para um amigo com a intenção de deixar de lado o negrume e tentar ser positivo – e que se revelou um pouco “cheesy”, como confessou sem se importar nada com isso –, poderia ser facilmente a banda sonora de um novo e apaixonado remake de "Karate Kid".

Durante a atuação foram várias as vezes que Grant tossiu para aclarar a garganta, mas a missão de atuar foi levada até ao fim, esticada ao limite e passada com toda a distinção.

Para terminar, escolheu o comovente “Little Pink House” – “I shouldn´t be singing this one but i have to” –, escrito para a sua avó e que Grant tinha deixado de tocar há alguns anos, como forma de enterrar os Czars e todas as más memórias e recordações.

Na despedida que não trouxe encore – compreensível e absolutamente desculpável –, o público aplaudiu de pé um exame passado com distinção e que pareceu beber as palavras eternizadas por Amália Rodrigues: “cantarei até que a voz me doa”. E olhem que deve ter doído bastante.

Pedro Miguel Silva