Se há coisa que “Mundo Pequenino” podia ter sido era pessimista, mas não é. Não pelos Deolinda, que musicalmente a coisa corre-lhes bem. Há talento e público em doses generosas. Desde 2008, com o disco de estreia “Canção ao Lado”, passando por “Dois Selos e um Carimbo”, de 2010, têm vindo a esgotar concertos cá dentro e lá fora. Mas o pessimismo podia vir deste país, das maleitas deste país que estão sempre à espreita nas canções dos Deolinda.

Um Portugal que Pedro da Silva Martins transporta para as letras que escreve e cujas emoções, feitios e defeitos a voz de Ana Bacalhau encarna na perfeição. Mas este não é um disco pessimista. É um disco de mudança. “Mundo Pequenino” deixa vir à tona esse Portugal em que “está tudo inquinado, pá”, em que “nada avança” e “não há renovação”, e em que o conformismo toma conta de muitos que até têm vontade de mudar a vida mas não arriscam. Mas o que os Deolinda fazem é pegar nisso, dar-lhe uma volta, e derrubam a tristeza e falta de horizonte com ironia, gingar, humor e a esperança de que o melhor ainda está para vir.

Talvez por isso o disco arranque com “Algo Novo”, um tema que convida a “vir daí”, a avançar. O mesmo otimismo que vive naquele que é o single do disco, “Seja Agora” ou em “Musiquinha”, que os Deolinda descrevem como o seu tema mais “Buraka Som Sistema”, pela batida e ritmo de dança. E depois há as histórias, que nasceram de detalhes e situações que Pedro Silva Martins observa, regista e passa para uma canção. Como “Medo de Mim”, nascida de uma viagem a Joanesburgo, na África do Sul, para um concerto, e em que o medo foi incutido desde o primeiro minuto. Sob proteção a toda a hora, pediram, exigiram ver um pouco da cidade e foram até uma loja de tecidos. À saída, alguém da sua comitiva foi “perseguida” pela senhora da loja. Temeram o pior e afinal a senhora só queria devolver uma nota. O medo de nós, dos outros e daquilo que nos dizem para ter medo: está tudo aqui.

Ana Bacalhau conta como surgiu o videoclip de "Seja Agora", o primeiro single:

Novos sons e um produtor “veterano”

“Mundo pequenino” traz novos instrumentos para o universo dos Deolinda. Para lá da voz de Ana Bacalhau, das guitarras e do contrabaixo, há agora cordas, sopros, percussão, sons que dizem ter captado das viagens pelo mundo que fizeram no último ano. Na percurssão tiveram a participação deSérgio Nascimento, no piano de Joana Sá, e no tema “Não ouviste nada” de António Zambujo, cujo arrastar da voz encaixa que nem uma luva nesta história de traição e conversas em cochicho.

Para produzir chamaram o britânico Jerry Boys, veterano que começou por trabalhar nos estúdios de Abbey Road, em Londres, nos anos 1960. O currículo impressiona: trabalhou com artistas como Beatles, Pink Floyd, Rolling Stones, R.E.M., Ali Farka Touré e projetos como Buena Vista Social Club. Ainda antes de gravarem, Jerry Boys veio a Portugal ver um concerto dos Deolinda, sentir-lhes o pulso. Ficaram-lhe no ouvido as canções “orelhudas” e trabalhou desde logo com eles sem nunca se perder a matriz dos Deolinda.

Neste “Mundo Pequenino” há músicas, histórias e cenas que ficam a tocar em "repeat" na nossa cabeça. “Semáforo da João XXI" narra um acidente na dita avenida João XXI , em Lisboa, que Pedro Silva Martins presenciou e que foi mote para imaginar uma história de amor. Ou “Balanço”, uma canção de embalar com bancos, avisos e contas à mistura. Ou “Concordância”, uma viagem gramatical, entre vozes passivas e sujeitos singulares. Ou "Há-de Passar", com "braços cruzados e perna cruzada". E claro, o “Fiscal do Fado”, uma figura que anda por aí a tentar prender o fado a uma norma (esta coisa de ser Património Imaterial da Humanidade tem que se lhe diga), numa regra, mas que a Deolinda, de avental e mão na anca, não aceita. É um maravilhoso jogo de palavras e de fados e é acima de tudo um manifesto: os Deolinda não se vão deixar condicionar por nenhum estilo, nenhuma norma. A portugalidade pode ser o que eles quiserem. E eles são o popular, são o fado, são os subúrbos, são o país. Para os quatro amigos, o fado não é maior que a liberdade. Como para o país a liberdade tem de ser maior que o destino.

@Vera Moutinho