Euforia e recolhimento, explosão e introspeção, rebeldia e vulnerabilidade. O título do 13º álbum de originais de Madonna denuncia logo o jogo de contrastes do alinhamento, um dos mais versáteis de uma discografia já de si abrangente. Mas se há muito por onde escolher, neste que também é dos registos mais longos da cantora de 56 anos (a versão standard, de 14 temas, tem quase uma hora de duração), o resultado acaba por marcar mais pela quantidade do que pela qualidade.
"Hard Candy" (2008) e "MDNA" (2012) já estavam longe de apresentar a rainha da pop no seu melhor, sobretudo depois da impressionante reinvenção entre o clássico "Ray of Light" (1998) e o muito eficaz "Confessions on a Dance Floor" (2005). Ainda assim, até nesses discos acolhidos de forma morna, mais interessados em seguir tendências (o hip-hop e a EDM) do que em abrir caminho, havia espaço para ouvir Madonna em grande forma ("Miles Away", "She's Not Me", "Love Spent" ou "Falling Free", por exemplo, não merecem ficar perdidas pelo caminho).
Infelizmente, o melhor de "Rebel Heart" é apenas mediano e esse nível nem é o mais regular num alinhamento sem grande unidade ou coerência, mesmo quando encarado a partir da dualidade expressa no título do disco. A impressão que fica, de forma ainda mais evidente do que nos dois álbuns anteriores, é a de que estas canções nascem já datadas, para não dizer requentadas, pela tentativa de aproximação ao território sobrepovoado (e muitas vezes banal) do hip-hop e R&B recente.
Madonna vai com as outras
A rebeldia do conceito raras vezes tem correspondência em canções que tanto poderiam ser de Madonna como de qualquer outra. É certo que nas letras há algumas referências à vida e obra da voz de "Like a Virgin", de forma mais ou menos explícita, mas não é nada que não tenha ocorrido já em registos anteriores, funcionando sobretudo como mimo para os fãs mais acérrimos. E talvez só mesmo estes últimos desculpem, de resto, tropeções como o de "Veni Vidi Vici". O tema até nem arranca mal, com o percurso de Madonna recordado através da associação a canções tornadas clássicos, mas esbate-se num refrão frouxo, sem a garra que a letra pede. Mais à frente, Nas tenta injetar-lhe alguma atitude e o resultado é dos momentos mais constrangedores do disco, com a vertente mais juvenil e emproada do hip-hop a deitar abaixo um retrato promissor.
O rapper não é o único erro de casting de um álbum a deixar cada vez mais saudades das colaborações com William Orbit ou Mirwais, produtores entretanto trocados por Diplo ou Avicii. O primeiro ocupa-se de "Living for Love", cartão de apresentação do álbum e abertura enérgica com ritmo house e coro gospel. Não é um mau single, mas dificilmente teria lugar num best of mais selecto. Também produzida por Diplo, "Unapologetic Bitch" tem sabor a reggae e dancehall, preferível aos acessos de dubstep anódino que lhe cortam parte do apelo. Estaria bem para Gwen Stefani, mas Santigold era capaz de a mandar para trás. Já Avicii é, tal como Blood Diamonds, um dos produtores de "Devil Pray", assente na combinação eletroacústica típica de alguns dos seus êxitos. O problema é que Madonna já teve canções bem melhores nesta vertente, em "Music" (2000) e "American Life" (2003), e nem as constantes referências a drogas impedem que esta soe a uma versão domesticada dessa fase - essa sim, verdadeiramente rebele, indiferente às tendências dominantes do momento.
Outra convocada, não por acaso associada a rebeldia, Nicki Minaj já tinha participado nos momentos menos conseguidos de "MDNA" e repete o feito em "Bitch I'm Madonna". A canção até sugere um devaneio à altura do título do disco, mas o refrão morno (irmão espiritual de "We Can't Stop", de Miley Cyrus) corta os crescendos de um potencial hino hedonista. "Who do you think you are?", grita uma Madonna com voz esquartejada, a deixar um ótimo gancho para uma remistura. "I'm Madonna, these hoes know", responde Minaj, a juntar mais uma frase infeliz à coleção e a deixar outro exemplo de triste vassalagem à rainha.
Chance the Rapper e Mike Tyson também aproveitam para fazer a vénia em "Iconic", cujo título se revela enganador ao servir uma das canções mais genéricas de um disco fértil nesse departamento - consegue-o à custa de hip-hop pouco imaginativo e letras em modo auto-ajuda, no qual Madonna raramente se sai bem. "Illuminati", produzida por Kanye West, aposta num R&B supostamente futurista mas já demasiado familiar. "Hold Tight" atira-se às pistas de dança sem deixar ecos na manhã seguinte (à custa de "Hold tight/ Everything's gonna be alright" e outros apelos vazios). As baladas não são muito mais aliciantes. "Ghosttown", "Wash All Over Me" e "Joan of Arc" parecem feitas a regra e esquadro para as rádios, embora esta última fosse mais cativante se não apostasse numa vulnerabilidade em que dificilmente se acredita ("Each time they take a photograph/ I lose a part of me I can't get back" é um queixume curioso vindo de quem vem, ainda assim menos presunçoso do que tiradas como "I'm not Joan of Arc/ Not yet").
No extremo oposto, "Holy Water" e "S.E.X." são herdeiras da provocação de "Erotica" (1992), com a primeira a juntar o sagrado e o profano e a segunda a dar lições de sexo tão inconsequentes como as de "As Cinquenta Sombras de Grey". Admita-se que, felizmente, Madonna não se leva muito a sério nestes exercícios, mas nem isso nem a produção sofisticada impede que sejam notas de rodapé numa obra que conta com "Justify My Love". Menos preocupada em chamar a atenção, "Best Night" revela-se mais insinuante e adulta, num raro momento de equilíbrio de um disco a oscilar entre o gratuito e o inofensivo. "Body Shop" é outro, minimal e acústico, e o mais conseguido talvez seja "HeartBreakCity", episódio sóbrio, quase austero, que não precisa de mais do que voz(es), piano e eletrónica discreta para o retrato de uma desilusão amorosa.
Apesar de ainda acolher laivos de inspiração como estes, "Rebel Heart" mostra-se uma experiência frustrante, incapaz de se sobrepor ao ruído mediático que antecedeu a sua edição - desde a polémica com as canções partilhadas online de forma não autorizada à queda na cerimónia dos BRIT Awards. Nesse aspeto, a faixa título (que encerra a versão deluxe do álbum) é pelo menos coerente: a letra revê o passado de uma artista ímpar, com uma carreira extraordinária, mas a música está a milhas desse legado e fica-se por uma pop linear, esquecível, sem rasgo. Coração rebelde? Não. Coração partido.
@Gonçalo Sá
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