Numa conferência de imprensa de apresentação de "Delta Machine", Martin Gore confessou que escreve a mesma canção "vezes sem conta" e é difícil não concordarmos com ele. Na mesma ocasião, Dave Gahan, o vocalista dos Depeche Mode, acrescentou que o compositor o faz "muito bem" e também podemos assinar por baixo, mesmo que consideremos que a escrita do grupo já foi mais inspirada e aventureira.

Depois de "Ultra" (1997), álbum tão apaixonante quanto esquecido, o trio que se completa com Andrew Fletcher tem acrescentado mesmo muito pouco a um template que, salvo algumas atualizações na produção, parece ter estagnado em meados dos anos 1990. Não por acaso, a banda revelou que foi buscar parte das influências de "Delta Machine" ao que criou há duas décadas, em especial a "Violator" (1990) e "Songs of Faith and Devotion" (1993), discos que tiveram um efeito revigorante num percurso até então nunca abaixo de auspicioso.

Ao percorrermos o alinhamento do novo álbum, percebemos que há, de facto, uma ligação ainda mais forte a esse ponto de viragem do que nos registos que ouvimos nos últimos anos - "Exciter" (2001), "Playing the Angel" (2005) e o mais eletrónico "Sounds of the Universe" (2009) -, embora os Depeche Mode nunca tenham deixado de lado a amálgama de guitarras e sintetizadores, com assimilações do blues ou do gospel, que parecem ter tornado marca registada do seu ADN (juntamente com as letras de Gore, quase sempre entregues aos abismos da perdição, da culpa e da redenção).

Videoclip de "Soothe My Soul":

Por isso, apesar de Dave Gahan cantar "my little universe is expanding" num dos temas de "Delta Machine", o novo disco volta a sugerir, como os antecessores mais imediatos, que o universo dos Depeche Mode de 2013 tem fronteiras mais rígidas do que as de outros tempos. Ninguém estará à espera que uma banda com mais de 30 anos continue a ter um papel pioneiro na exploração eletrónica, mas seria legítimo pedir mais do que o novo sucedâneo de "I Feel You", "Behind the Wheel" ou outros clássicos, e alguns destes inéditos não vão muito além disso. Por outro lado, se a ideia é apostar na citação mais ou menos descarada, nada mais justo do que a ouvirmos através dos próprios Depeche Mode (até porque "Delta Machine" será sempre preferível a um disco dos Hurts ou de outros devotos igualmente duvidosos).

Sem pretenderem ampliar os horizontes da banda, as novas canções são, pelo menos, um repisar seguro, e geralmente interessante, de territórios que Gahan, Gore e Fletcher desbravaram há décadas e que dominam como poucos. Também ajuda que o trio escolha as companhias a dedo: Ben Hillier, produtor dos últimos dois discos, regressa para garantir o update sonoro (o recheio das canções é antigo, mas a cobertura, às vezes, engana bem); Flood, determinante para o som de "Violator" e "Songs of Faith and Devotion", volta para assegurar a mistura; Christoffer Berg, colaborador habitual dos The Knife, também anda por aqui, trata das programações e contribui para um toque mais contemporâneo.

Videoclip de "Heaven":

"Heaven", o single de avanço, mostrou uma faceta intimista e orgânica que deve tanto a alguns momentos dos Depeche Mode (os tais dos 90s) como ao maior pendor blues dos Soulsavers, projeto que contou com Gahan como vocalista convidado no álbum "The Light the Dead See", um dos mais (injustamente) ignorados do ano passado.
Mas são "Welcome to My World" e "Angel", logo no início do alinhamento, que nos dão uma introdução mais fidedigna do que podemos encontrar em "Delta Machine", cedendo o protagonismo a uma eletrónica mais áspera do que a do mal amado "Sounds of the Universe". "Should Be Higher" ou "Soothe My Soul" também optam por sintetizadores simultaneamente dançáveis e opressivos q.b., atestando as virtudes de uma máquina bem oleada e pouco interessada em contornar uma fórmula.
"Soft Touch/Raw Nerve" é um (esse sim, inesperado) piscar de olho à synth pop dos primeiros discos do grupo e um contraste com "My Little Universe", incursão num techno minimalista e milimétrico. "Slow" oferece um momento de descompressão que prova que blues e hedonismo são compatíveis e "Alone", na reta final, diz-nos que os Depeche Mode ainda conseguem assinar uma canção pop majestática - tanto na grandiosidade eletrónica como na inspiração muito acima da média.

As maiores surpresas de "Delta Machine" encontram-se, contudo, nas quatro faixas bónus da edição especial, qualquer uma merecedora de lugar cativo na edição normal. A etérea e planante "Always", com a voz de Martin Gore, supera facilmente "The Child Inside", o outro tema cantado pelo compositor (e há quase sempre algum nos discos dos Depeche Mode), que integra o alinhamento da versão standard do disco. "Happens All the Time", com a assinatura de Dave Gahan, é mais uma prova de que, às vezes, trocar de papel pode ser boa ideia e aqui resulta num exercício eletrónico mais refrescante do que, por exemplo, a guitarrada previsível de "Broken". A eletrónica espacial conduz e domina, aliás, as quatro faixas bónus, abrilhantadas por uma produção irrepreensível na linha das texturas mais sugestivas de "Sounds of the Universe". Caso os Depeche Mode continuem a acrescentar novos títulos à sua discografia - e ainda não disseram nada em contrário -, era por aqui que gostaríamos de os ver seguir, agora que a máquina patenteada há duas décadas já foi testada, implementada, explorada e oficialmente revisitada. E não precisamos de um disco mecânico quando a banda em questão trouxe tanta alma à eletrónica...

@Gonçalo Sá