Se por alturas do primeiro EP, "Cheguei Tarde a Ontem" (2022), Ana Lua Caiano se arriscava a ser um segredo demasiado bem guardado da música nacional, é impressionante o trajeto que a cantora, compositora, multi-instrumentista e produtora tem feito desde aí - e em tão pouco tempo.
A essa amostra inicial de canções seguiram-se um outro EP, "Se Dançar É Só Depois" (2023), e mais recentemente o longa-duração "Vou Ficar Neste Quadrado". Editado em março pela alemã Glitterbeat, o primeiro álbum não tem desiludido quem encontrou na artista de 24 anos uma das vozes que já ganharam um lugar particular na música que se faz por cá, tão devedora de referências de dentro como de fora de portas, da tradição portuguesa à experimentação eletrónica (José Afonso e Björk são dois dos seus baluartes). Mas também da clássica ou do jazz, escolas talvez não tão evidentes nos discos mas determinantes numa vida musicalmente ativa desde a infância, iniciada em aulas de piano e com passagem pelo Hot Clube de Portugal ou por várias bandas.
A aproximação a ferramentas eletrónicas - encorajada pelo período do confinamento - levou Ana Lua Caiano a esboçar uma ponte entre folclore e tecnologia que vem dar novo fôlego a cruzamentos que se tornaram mais habituais desde que Megafone, projeto pioneiro de João Aguardela, arriscou experiências laboratoriais no final do século passado.
De Omiri aos Criatura, passando pelos Bandua, Expresso Transatlântico ou os recentíssimos (e brilhantes) Cara de Espelho, são cada vez mais os convertidos a um cruzamento de linguagens que conjuga o rural e o urbano, o passado e hipóteses de um futuro híbrido. Ainda assim, a voz de "Vou Ficar Neste Quadrado" dificilmente se confundirá com algum deles, ao partir de ladainhas polvilhadas com um humor seco e imaginário surrealista, crónicas do quotidiano tão orelhudas como esquivas, concentrados de ritmo e imagens fortes. E que raramente vão além dos três minutos de duração, num exemplo meticuloso da lógica menos é mais.
Mas como salta esta música, tão singular e minuciosa, e aos primeiros contactos talvez algo hermética, para um palco? A julgar pelo que se viu no B.Leza, cada vez melhor. Ana Lua Caiano já parece ter deixado quaisquer sintomas da reclusão da pandemia (a timidez, desde logo) bem lá para trás e está bastante mais desenvolta do que em concertos de um passado não muito distante (os dos festivais FNAC Live e NOS Alive, por exemplo). Não perdeu a disciplina com que coordena o adufe, bombo, escaleta, teclados ou sintetizadores, além das muitas camadas de loops vocais ou instrumentais, um "one woman show" tão impressionante como antes. Mas também intui quando deve convocar o público a ser parte do espetáculo em vez de mero observador deste (mesmo que seja um observador entusiasta). E por isso convidou-o várias vezes a cantar com ela e a juntar o seu canto ou palmas ao ADN das canções. Ou ainda, de forma mais inesperada, a aproveitar o ritmo que resultou de uma multidão a bater o pé, na faixa título do álbum.
Contribuições destas ajudaram a levar os temas para versões diferentes das gravadas, como aconteceu num dos primeiros momentos de sintonia, "Ando em Círculos". Em modo quase a capella, contando apenas com voz e pandeireta, deixou claro que esta música não vive só da alquimia do estúdio (por muito prodigiosa que possa ser).
"De Cabeça Colada ao Chão", nos seus antípodas, ofereceu uma tapeçaria intrincada de camadas quase industriais, antecedida de uma amostra espirituosa de um workshop de loops. Foi dos poucos episódios em que as imagens projetadas ao fundo do palco mostraram em detalhe o equipamento instrumental da artista e o manual possível de procedimentos. Nos outros, viram-se cenários rurais e urbanos fotografados a preto e branco (ou preto e branco e sépia), a lembrar que nenhum pormenor é deixado ao acaso - pelo contrário, os videoclips realizados pela irmã da artista, Joana Caiano, dão novos sentidos a uma obra tão exigente no plano visual como no musical (e vale muito a pena espreitá-los).
Ao longo de quase hora e meia, "Os Meus Sapatos Não Tocam nos Teus", "Se Dançar É Só Depois" e "Mão na Mão", com crescendos vertiginosos na reta final, impuseram-se como outros picos de uma noite que também terminou em alta, cortesia do frenesim de costela raver de "O Bicho Anda Por Aí", a provar que da tradição portuguesa à música de dança pode ir um passo - ou um loop certeiro. Certo é que, passo a passo, loop a loop, Ana Lua Caiano tem somado palcos nacionais e estrangeiros, aplausos sonantes da crítica e de cada vez mais público. "Sai da frente vou passar/ Que tenho de montar/ Um futuro para mim", cantou num dos seus primeiros singles, "Sai da Frente, Vou Passar", que também se ouviu no B.Leza. Com canções destas na bagagem e concertos tão conseguidos, dificilmente alguém bloqueará o seu caminho...
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