A “dor de crescimento” de uma criança, num país no auge de uma crise económica, serve de mote a “Tristeza e alegria na vida das girafas”, o novo filme de Tiago Guedes que é exibido hoje no IndieLisboa.

O filme é uma adaptação da peça de teatro homónima, de Tiago Rodrigues, apresentada pela primeira vez na Culturgest, em Lisboa, em 2011, numa produção da companhia Mundo Perfeito.

Tiago Guedes acompanhou todo o processo da peça, tendo assistido “até antes de ela estrear” e gostou “logo muito do texto”.

“Fiquei muito apaixonado por muitas vozes das personagens, nomeadamente da criança, a girafa, e do urso, o Judy Garland. Além disso, eu estava há muito tempo com vontade de falar da dor do crescimento e achei que o filme abordava, de uma forma até bastante forte, todo esse processo evolutivo. Desafiei logo o Tiago a passá-lo para cinema”, contou o realizador em conversa com a Lusa.

No filme, ‘girafa’ (interpretada por Maria Abreu), para resolver um problema, parte em busca da única pessoa que acha que a poderá ajudar, o primeiro-ministro. A senda é feita na companhia do seu urso de peluche, Judy Garland (Tonan Quito).

Na peça de teatro, a protagonista era interpretada por Carla Galvão, uma mulher a fazer de criança, "o que muda logo todo o jogo, toda a forma como a brincadeira - que é assumida em palco - de repente se confronta com um realismo que o cinema veio impor de alguma forma”. No filme, é uma criança a assumir o papel.

Tiago Guedes quis “manter muito do elenco da peça original”, e dos quatro atores que subiram ao palco, dois (Miguel Borges e Tonan Quito) estão no filme.

“Havia o problema de eles se desdobrarem em personagens e eu não quis estar a fazer esse desdobrar, a não ser num, que me fez muito sentido do ponto de vista narrativo, que foi o do pai, que se desdobra para mãe”, contou.

O elenco do filme inclui ainda, entre outros, Gonçalo Waddington, Miguel Guilherme e Tiago Rodrigues, que interpreta o primeiro-ministro, que na peça tinha um nome, Pedro Passos Coelho, mas no filme é apenas o primeiro-ministro, e “a razão é muito simples”: o realizador “não queria datar o filme”.

“Acho que a coisa tinha que ser mais generalizada e ao nomearmos a pessoa em causa iriamos estar sempre a tornar o filme daquela época e eu queria que fosse um bocadinho mais universal. Eu não queria que fosse sobre aquele primeiro-ministro, mas sim sobre o poder e sobre esta criança querer chegar a quem manda, a quem de alguma forma é responsável”, justificou.

A opção foi “muito consciente” e até “custou um bocado” a Tiago Guedes tomá-la, já que “gostava muito de uma das falas [da peça] em que o chamavam pelo nome”.

A ação da peça desenrola-se em Lisboa, no auge da crise económica. Oito anos depois, o realizador considera que, “infelizmente, muita da problemática que está retratada no filme a esse nível permanece”. “Poderá estar menos grave aqui e ali, mas são remendos curtos. De uma forma geral as pessoas estão com muitas dificuldades e com menos dinheiro”, afirmou.

“Tristeza e alegria na vida das girafas” acabou por demorar muito tempo a ser feito – praticamente oito anos – e a principal razão foi a falta de financiamento.

“Quando partimos para isto não tínhamos quase dinheiro e eles [atores] aceitaram viajar connosco, e decidimos arriscar quando já estava a esgotar todo o tempo possível de o fazer”, referiu o realizador, explicando que se arriscava a que a “urgência” que sentia “em contar aquela história pudesse desaparecer”.

“Quando senti que isso estava em risco de passar, decidimos arriscar e arriscámos sem dinheiro, conseguimos alguns apoios importantíssimos, que nos viabilizaram o filme, mas nem de perto tínhamos o dinheiro para fazer o filme. Depois conseguimos ganhar um apoio à finalização, já com o filme rodado, e aí é que conseguimos acertar as contas”, contou.

A peça estreou-se em 2011, a equipa esteve “um ano ou dois até ter o argumento completo”, seguiram-se “várias tentativas de subsídio e de financiamento”, falhadas, e a rodagem aconteceu no verão de 2017.

Para “ajudar na montagem”, Tiago Guedes usou canções de Manel Cruz, do projeto Foge Foge Bandido, e entretanto decidiu convidar o músico para criar a banda sonora.

“Quando fiz o convite, decidimos em conjunto que haveria músicas que faria todo o sentido utilizar [no filme] e depois ele começou a compor temas originais”, contou o realizador.

“Tristeza e alegria na vida das girafas” teve estreia mundial no Festival Internacional de Cinema de Guadalajara, no México, na Competição Internacional de Longas-Metragens, em março deste ano.

Como o filme “tem muito texto, há muitas falas, e isto obriga a que tenha muitas legendas”, Tiago Guedes tinha “muito receio de como as pessoas iriam conseguir acompanhar e identificar-se minimamente com a história”.

“Fiquei muito satisfeito porque percebi que o tema é de facto universal. Senti que as pessoas que assistiram se reviram muito na história, não só nas dificuldades da crise, mas também com todos os problemas existenciais que o filme retrata”, recordou.

Com “Tristeza e alegria na vida das girafas”, Tiago Guedes queria “muito ajudar a perpetuar” as personagens q viu em cena no palco.

“O teatro tem essa magia do efémero, as personagens desaparecem e o cinema consegue, de alguma forma, guardá-las”, disse.

“Tristeza e alegria na vida das girafas” é exibido hoje, às 21:30, na sala Manoel Oliveira do Cinema São Jorge, e na sexta-feira, às 14:30, na sala 3 do mesmo cinema.