Há quem encare agora o realizador Nanni Moretti como o “marco de um passado recente”, conquistando o seu espaço com filmes que não reformulam a sua estrutura nem a abordagem, vincando novamente as suas duradouras questões políticas, de certa forma avesso a muitas preocupações atuais.

Contudo, o italiano continua um exímio artesão na sensibilidade com que coloca as suas personagens em situações mundanas ou até mesmo em sentimentos encarregados de preencher as suas respetivas ausências. Acima de cineasta político-satírico, Nanni Moretti é um homem das relações afetivas e como estas se manifestam perante as mais diferentes desventuras.

Inspirado num livro de Eshkol Nevo, o mais recente trabalho chama-se “Três Andares”, que competiu pela Palma de Ouro na última edição do Festival de Cannes, onde os seus filmes são presença quase sempre garantida.

“Os franceses apreciam a minha obra e eu dedico-lhos até esta admiração perdurar”, justificou quando se encontrou com o SAPO Mag para uma conversa na cidade francesa.

Fale-me sobre o seu particular interesse neste livro ao ponto de o adaptar.

Diário de Cannes (5): de Sean Penn, o bobo da corte, a Nanni Moretti, o italiano sensível
Diário de Cannes (5): de Sean Penn, o bobo da corte, a Nanni Moretti, o italiano sensível
Ver artigo

Sou um leitor lento, mas neste caso tornei-me viciado nas suas páginas, apercebendo-me de imediato que este era o tipo de personagens e histórias que desejaria contar no grande ecrã. Porém, a estrutura narrativa do livro não era adaptável ao formato cinematográfico. Por exemplo, as três histórias que decorrem num só prédio que não se cruzam, tendo decidido que teriam que ser entrelaçadas no filme. Outra grande diferença é que, no livro, todas estas personagens narram as suas desventuras a outras. No guião tentamos trazer a ação descrita nesses relatos, assim como as suas consequências na vida destas mesmas personagens.

Tem o costume de ser duro com as suas próprias personagens, mesmo as interpretadas por si, mas vamos sempre ter um certo afeto por elas. “Três Andares” vive também disso, de procurar compaixão em personagens sofridas, sem nunca as vitimizar. 

Espero sempre que os espectadores amem as minhas personagens, mesmo que estas tenham um complicado processo de afeição. Falo das minhas encarnações como das outras.

Tenho sentido, principalmente nos últimos trabalhos, seja na realização [“O Quarto do Filho”, “Minha Mãe”] ou até mesmo na interpretação [“Caos Calmo”], uma certa atração pelo vazio e a ausência. É como se o Moretti quisesse atribuir um corpo possível às mesmas.
Atração não diria. O que acredito é que a ausência e o vazio são partes integrantes da vida e, como tais, incontornáveis nas minhas histórias. Sinto o dever de as colocar no centro delas.

“Três Andares” é possivelmente um dos seus filmes mais dramáticos, mas não é só isso, há aqui uma total ausência de humor. Aliás, o seu característico humor satírico. 

Não me interessava fazer um outro filme 'à la Nanni Moretti' [risos]. Estas personagens, com estas histórias, necessitavam de outro tom, assim como achei por bem não nomear um protagonista nesta comunidade. Todas as personagens estão em pé de igualdade. E sem um protagonismo definido, não ficamos condicionados a um só enfoque, a uma só direção, apenas ao essencial. Estas personagens apenas vivem no meu filme com a sua essencialidade e isso foi desafiante, assim como atribuir a cada história um estilo próprio, uma personalidade.

O que tem contra o filme 'à la Moretti'? [risos]
Nada. Apenas digo que este filme não precisava desse tratamento. Posso adiantar que o meu próximo trabalho será uma comédia, que escrevi durante a pandemia, mas advirto que não será sobre a pandemia. [risos] Mas voltando ao 'filme Moretti', apercebi-me recentemente que os meus filmes são diferentes capítulos da mesma camada, portanto decidi afastar-me desse registo.

Falando no guião, o Nanni Moretti tem por hábito escrever os seus próprios filmes. Em caso de uma adaptação com esta, sentiu-se limitado em termos criativos?

Esta é a primeira vez que adapto em vez de escrever do zero um enredo, mas posso garantir que não me senti minimizado criativamente com isto.

Outro 'modus operandi' é o de atuar nos seus próprios filmes. “Três Andares” não é exceção. De que forma isso facilita ou dificulta a direção dos outros atores?

As minhas principais preocupações quando trabalho num filme são a escrita, o 'casting' e a direção dos atores. Ou seja, a atuação é a minha grande prioridade no meu cinema, são os atores que fazem e tornam possíveis os filmes, e como tal faço os possíveis para que os seus desempenhos sejam os mais credíveis possíveis. Por exemplo, tento conceber diálogos não tão literais e dirijo aos meus atores com o seguinte conselho: 'Decorem os diálogos, abreviam-nos, mas não os tornem aguçados'. Através desse método tento que os seus desempenhos sejam realistas, mas não naturalistas. Espontâneos, mas não instintivos, apenas simples.

Visto que tem uma sala de cinema [Nuovo Sacher, em Roma]...

Sim, tenho-a há mais de 30 anos. O primeiro filme lá exibido foi “Riff-Raff”, de Ken Loach, em 1991.

… como encara estas novas formas de visualização dos filmes? Falamos, obviamente, do streaming.

Penso que a sala de cinema é imprescindível. E não digo isto como realizador, produtor ou exibidor, e sim como espectador. Não consigo imaginar a minha vida sem a possibilidade de ir a um cinema. A escuridão, a projeção em grande ecrã, a possibilidade de partilhar a nossa experiência com outros, são estas e mais as atenções a ter numa sala, que não são reproduzíveis noutras plataformas. Continuo a escrever e dirigir filmes somente endereçados para o cinema. Sei bem que as pessoas estão a habituar-se a ver filmes nos seus smartphones, mas pretendo ignorar esse facto. Isso nunca existiu. [assobia]

Disse que o seu próximo filme foi escrito durante a pandemia. Nesse sentido, ela teve algum efeito no seu trabalho? 

Se a pergunta for 'o que aprendeste com a pandemia', então a minha resposta seria automaticamente nula. [risos] Todas as lições supostamente ensinadas nesta pandemia já tinha aprendido antes da sua existência. A morte faz parte do nosso percurso existencial, a desigualdade social foi ‘coisa’ que sempre tive perceção, e que as nossas vidas são dependentes do acaso e da sorte. Sou um ‘sortudo’, mas há quem não teve essa sorte. Parte do meu filme foi rodado depois da pandemia e por isso adquire uma nova interpretação. Começamos  a ver “Três Andares” como uma analogia sobre a realidade pós-pandemia, a nossa resistência em sair do 'conforto' e 'segurança' dos nossos apartamentos e voltarmos a abordar o exterior, novamente como uma comunidade.

TRAILER "TRÊS ANDARES".