A caminho dos
Óscares 2023
A nomeação de "Ice Merchants" a 21 de janeiro para o Óscar de Melhor Curta-Metragem de Animação foi o culminar de um ano muito especial para o cinema português: “O Homem do Lixo”, de Laura Gonçalves, foi a outra curta que chegou ao grupo de 15 finalistas de animação na categoria, e "O Lobo Solitário", de Filipe Melo, integrou o grupo das curtas em imagem real.
O filme de 14 minutos, completamente sem diálogos, tem vindo a conquistar públicos de todo o mundo desde maio do ano passado, numa metáfora poderosa e universal sobre a família, a perda e a reconciliação, a partir de um ponto de partida simples mas graficamente muito arrojado, fazendo pleno uso da vertigem e das perspetivas mais extremas, da história de pai e filho que vivem suspensos nas alturas, numa casa presa no alto de um precipício, e trabalham no comércio de gelo, que vendem numa aldeia na planície lá muito em baixo. Como lá chegam? Lançam-se pelos ares, de para-quedas, de forma tão temerária como visualmente espetacular.
A assinar a realização, a música, o argumento, a montagem, a direção de arte e parte da própria animação, o filme é o primeiro feito em contexto profissional de João Gonzalez, cineasta de 27 anos com formação clássica em piano e estudos de animação na londrina Royal College of Art, onde fez os dois filmes anteriores, “The Voyage” e “Nestor”, ambos já com sólida circulação em festivais.
A produção pertenceu à cooperativa Cola Animation, com o produtor a ser o multifacetado Bruno Caetano, 43 anos, também editor de BD e ele próprio realizador de filmes em animação “stop-motion” como o muito premiado “O Peculiar Crime do Estranho Sr. Jacinto” e de encantadores telediscos como “Cinegirasol” e “Fundo de Garrafa” para os Azeitonas.
Veja o trailer de "Ice Merchants".
O filme tornou-se uma das raras curtas-metragens de animação portuguesa a ter estreia mundial na Semana da Crítica do Festival de Cannes (seguindo-se a “Os Salteadores”, em 1994, na Semana da Crítica, “Estória do Gato e da Lua”, em 1995, na Seleção Oficial em Competição, e “Água Mole”, já em 2017, na Quinzena dos Realizadores) e o primeiro de todos a ser aí premiado, com o troféu Leitz Cine Discovery, destinado à melhor curta-metragem a concurso.
"Foi a primeira vez que o filme foi exibido em público, nós estávamos lado a lado e duas filas atrás havia uma pessoa que chorava naquela parte mais emocionante. (...) Há muita gente que se emociona a ver o filme, talvez por razões distintas. O filme é tão humano, poderá afetar cada um de uma forma completamente diferente ou por razões completamente diferentes. Mas a verdade é que as pessoas sentem aquilo que o João tentou transmitir com o filme. E aí realmente há uma sensação de missão cumprida. É bom conseguir transmitir estas coisas ao público", recordou Bruno Caetano em entrevista ao SAPO Mag nos primeiros dias de fevereiro.
Foi o início de um período recheado de galardões em todo o mundo, que culminou com a nomeação ao Óscar... que levou a uma estreia inédita em mais de 30 salas de cinema comerciais portuguesas a 16 de fevereiro, já a ultrapassar os 7500 espectadores.
A dupla tem vivido num frenesim de entrevistas, parabenizações e solicitações. A campanha intensificou-se a partir de 13 de fevereiro com a presença no tradicional almoço que junta os nomeados em Los Angeles e ainda mais depois da vitória a 25 de fevereiro em Melhor Curta-Metragem nos Prémios Annie, os mais importantes para o o cinema de animação nos EUA.
Após chegar a este patamar e sobre a possibilidade de conquistarem a seguir o Óscar, que não está nas previsões finais de qualquer imprensa especializada de referência americana, o realizador confessou: “Seria algo absolutamente incrível, mas temos de manter os pés na terra. Acho que nenhum de nós acha que é completamente impossível, mas na corrida há, claramente, um ou dois favoritos que, em termos mediáticos, têm mais projeção que nós”.
De facto, os outros nomeados na sua categoria também têm dado muito que falar no mundo da animação: o norte-americano “My Year of Dicks”, realizado por Sara Gunnarsdótti, premiado no Festival de Annecy; o canadiano “The Flying Sailor”, da dupla Amanda Forbis e Wendy Tilby, produzido pelo incontornável National Film Board of Canada; e o australiano “An Ostrich Told Me The World Is Fake And I Think I Believe It”, curta em 'stop-motion' de Lachlan Pendragon, que já conquistou o troféu da Academia destinado a filmes de estudantes.
Mas a forte concorrência vem do popular “O Menino, a Toupeira, a Raposa e o Cavalo” baseado no célebre livro do mesmo título de Charlie Mackesy, que realizou o filme com Peter Baynton.
Vencedor de quatro Annie na mesma cerimónia e ainda do BAFTA da Academia Britânica, é o grande favorito, em parte, como notou o The Hollywood Reporter nas suas previsões finais, porque "apesar de ser bastante banal e sem graça", tem a seu favor o impacto do livro, a presença de estrelas no elenco de vozes e na produção (Gabriel Byrne, Idris Elba, Tom Hollander, J. J. Abrams, Woody Harrelson) e... "a Apple gastou uma fortuna para promovê-lo".
Já "Ice Merchants", com apoios do Ministério da Cultura, do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) e da Câmara Municipal do Porto, tem na equipa de promoção exatamente quatro pessoas, duas delas os próprios Gonzalez e Caeteno, com Benoit Berthe Siward e Celine Ufenast, da Animation Showcase, que criaram a estratégia até ao fim da votação às 17h00 de terça-feira.
À Lusa, o produtor descreveu uma “campanha de guerrilha” para promover a obra portuguesa: “É lógico que gostaríamos de ter cartazes nas paragens de autocarro e ‘outdoors’ em Los Angeles, mas quando um ‘outdoor’ o mínimo são 15 mil dólares, nós não temos maneira nenhuma”.
Ou seja, apostou-se em mais entrevistas a meios importantes nos EUA, eventos de exibição e investimento em publicidade direcionada ‘online’ direcionados às cidades onde há maior concentração de membros da Academia, de forma a maximizar o alcance da curta-metragem, com um posto de operação no próprio apartamento onde estão hospedados Gonzalez e Caetano.
Há um mês, o realizador destacava ao SAPO Mag que os Óscares eram, "acima de tudo, uma possibilidade de expor o nosso filme. Porque os Óscares têm aquele fator mediático, toda a gente sabe o que são. Nós fazemos filmes para chegarem às pessoas, e se os Óscares nos ajudarem com isso, ficamos muito felizes, obviamente".
Já a partir de Los Angeles descobriu um outro impacto de estar na corrida aos Óscares: “O que me surpreendeu muito pela positiva foi entrar em contacto direto não só com celebridades, mas com membros da Academia e através das conversas perceber que eles realmente tinham visto o filme. As pessoas conheciam e algumas estavam interessadas em falar connosco”.
“Surreal” é como descreveu a experiência de estar na meca do cinema como nomeado: "É um mundo mais caótico do que o que estamos à espera, mas toca-nos muito saber que numa cidade tão grande, mesmo com os nossos recursos limitados, o filme está a chegar às pessoas”.
Caetano também partilhou a surpresa de serem interpelados por pessoas – mesmo produtores de grandes estúdios – que ficaram interessadas ao saber que eles eram os responsáveis por “Ice Merchants”.
“Disseram que adoraram o filme”, contou, e ficaram estupefactas com o facto de ter sido uma animação feita por duas pessoas em cerca de quatro meses.
“É a capacidade portuguesa do desenrasca”, resumia com humor.
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