"Titane", de Julia Ducournau, recebeu a Palma de Ouro do 74.º Festival de Cannes, cujo palmarés foi anunciado este sábado à tarde.

Recebido das mãos de Sharon Stone, é a segunda vez na história do festival mais importante do mundo que o prémio vai para o filme de uma mulher realizadora, após Jane Campion em 1993 por "O Piano", quando Julia Ducournau tinha... 9 anos.

Também é o primeiro título francês a ganhar desde "Dheepan" em 2015, de Jacques Audiard (que estava na corrida com "Les Olympiades", que ficou sem prémios).

“Obrigada ao júri por ter apelado a uma maior diversidade nas nossas experiências no cinema e nas nossas vidas. Obrigada ao júri por deixar os monstros entrar”, disse entre lágrimas a realizadora, que já sacudira o festival com "Raw", o seu primeiro filme, em 2016.

Comprado para Portugal pela distribuidora Alambique e protagonizado por Vincent Lindon e Agathe Rousselle, "Titane" é um "body horror" que tem sido comparado a "Crash", de David Cronenberg (1996), revelando a história de uma mulher convertida em assassina em série com atração sexual por carros.

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Sucedendo a "Parasitas", a Palma de 2019, o filme da francesa era o mais radical, excêntrico e violento entre os 24 na disputa, o que não fazia dele um favorito, mas o suspense à volta da ousada escolha perdeu-se por causa de uma gafe monumental do presidente do júri Spike Lee no início da cerimónia: a atriz e anfitriã Doria Tillier perguntou-lhe "Pode dizer-me que prémio é o primeiro prémio?" e em vez de revelar o prémio de interpretação masculina, o realizador norte-americano respondeu "Sim, posso. O filme que ganha a Palma de Ouro é 'Titane'".

Foi um "lost in translation" a fazer recordar o do envelope errado e o anúncio de "La La Land" como o Óscar de Melhor Filme: já não chegou a tempo o "não" da atriz francesa Mélanie Laurent, que integrava o júri, e a inesperada revelação deixou estupefacto o público dentro do Grand Theatre Lumière.

Os outros membros, a atriz, realizadora e argumentista senegalesa Mati Diop, a atriz francesa Mylène Farmer, a atriz norte-americana Maggie Gyllenhaal, a realizadora e argumentista austríaca Jessica Hausner, o realizador e argumentista brasileiro Kleber Mendonça Filho, o ator francês Tahar Rahim, e o ator sul-coreano Song Gangho, dividiram-se entre o riso e esconder o rosto com as mãos.

VEJA O MOMENTO.

Mais tarde, um "mortificado" Spike Lee acabou por ser consolado pela própria Julia Ducournau, Sharon Stone e os membros do júri, com o ator Tahar Rahim, que estava atrás, a sentar-se ao seu lado para lhe servir de tradutor durante o resto da cerimónia.

Spike Lee após a gafe

Mas o episódio não é suficiente para manchar um festival cuja realização por si só já foi uma vitória, após o cancelamento do ano passado e a realização entre 6 e 17 de julho em vez do tradicional mês de maio ainda por causa da pandemia: entre vacinados, máscaras e milhares de testes PCR, a organização revelou que apenas houve 70 testes positivos à COVID-19.

Na competição, Portugal estava apenas representado na corrida à Palma de Ouro das curtas-metragens por "Noite Turva", de Diogo Salgado, mas ganhou a chinesa "Tous les corbeaux du monde", de Tang Yi (houve ainda uma menção especial para a brasileira "Céu De Agosto", de Jasmin Tenucci.

OS PREMIADOS EM PALCO NO FIM DA CERIMÓNIA.

"Titane" superou filmes realizados por grandes nomes do cinema, incluindo vários que saíram sem qualquer prémio de Cannes, como Wes Anderson ("The French Dispatch"), Paul Verhoeven ("Benedetta"), Nanni Moretti ("Tre piani") e François Ozon ("Tout s'est bien passé").

Também ficou à frente do filme visto como uma escolha mais consensual para a Palma, o japonês "Drive my Car", que poucas horas antes recebera os prémios de Melhor Filme da crítica internacional e do júri ecuménico (que premeia desde 1974 um dos filmes em competição que melhor exalta os valores humanos e solidários), e ficou pela distinção pelo argumento de Ryūsuke Hamaguchi e Takamasa Oe. Será distribuído em Portugal pela Leopardo Filmes.

O Grande Prémio do Júri, um "segundo lugar" no palmarés, foi ex-aequo para "A Hero", do iraniano Asghar Farhadi (vencedor do Prémio do Argumento por "O Vendedor" em 2016), um "thriller" psicológico com o qual o vencedor do Óscar voltou a rodar no seu país natal, e "Compartment N. 6", do finlandês Juho Kuosmanen, um "road-movie" sobre uma mulher que vai de comboio em direção ao círculo polar ártico. O primeiro será distribuído em Portugal também pela Alambique e o segundo pela Legendmain.

O Prémio do Júri, que corresponde a um terceiro lugar, também foi ex-aequo para "Ahed’s Knee", do israelita Nadav Lapid, sobre um cineasta enfrenta a morte de sua mãe, e "Memoria", do tailandês Apichatpong Weerasethakul (já consagrado com a Palma em 2010 por “O Tio Boonmee que se lembra das suas Vidas Anteriores”), onde Tilda Swinton interpreta uma orquidófila que viaja à Colômbia para visitar a sua irmã e começa a ouvir sons estranhos. O primeiro tem distribuição portuguesa assegurada pela Alambique e segundo pela Midas.

O francês Leos Carax foi consagrado com o Prémio de Melhor Realização por "Annette", o filme de abertura do festival e que já está nos cinemas portugueses, protagonizado por Adam Driver e Marion Cotillard, que personificam um casal de estrelas cuja vida muda com a chegada da sua primeira filha.

A "Câmara de Ouro", atribuído a um primeiro filme, foi para "Murina", da realizadora Antoneta Alamat Kusijanovic, uma coprodução entre Sérvia e Croácia para uma adolescente que decide substituir o seu pai controlador por um amigo estrangeiro durante uma viagem de fim de semana ao Mar Adriático.

Um grande momento da cerimónia de encerramento foi a Palma de Ouro Honorária entregue ao realizador italiano Marco Bellocchio (outra foi entregue na abertura a Jodie Foster).

O autor de filmes como "Henrique IV" (1984), "A condenação" (1991), "Bom dia, noite" (2003), "Vencer" (2009), "Bela adormecida" (2012) e "O Traidor" (2019), de 81 anos, recebeu o prémio das mãos do compatriota Paolo Sorrentino.

Os prémios dos atores

O júri do Festival de Cannes consagrou dois atores pouco conhecidos do grande público.

Aos 31 anos, Caleb Landry Jones ganhou o prémio de Melhor Ator pelo seu papel em "Nitram", do australiano Justin Kurzel, no qual interpreta um assassino em série. É outro título distribuído em Portugal pela Alambique.

O filme, retrato do autor de um massacre que em 1996 deixou 35 mortos na ilha australiana da Tasmânia, gerou polémica no país antes mesmo do seu lançamento, principalmente entre os familiares das vítimas.

Mas Caleb Landry Jones, que também é músico, não hesitou em interpretar o assassino, Martin Bryant, condenado à prisão perpétua.

"Não disse a mim mesmo 'cuidado, terei problemas se fizer este filme", disse o ator à agência France-Presse (AFP). "Pelo contrário, fiquei muito interessado neste filme porque fala de um assunto de que ninguém quer falar."

Nascido no Texas, Caleb Landry Jones fez a sua estreia no cinema aos 13 anos com um pequeno papel no filme dos irmãos Coen "Este País Não é Para Velhos", que ganhou quatro Óscares em 2007.

Desde então, atuou no cinema independente americano, desempenhando papéis ambivalentes: de um viciado em drogas ultrassensível em "Heaven Know What" (2014), dos irmãos Safdie, a um homem tóxico na terceira temporada de "Twin Peaks" (2017), passando por um funcionário de um posto de gasolina em "Os Mortos Não Morrem" (2019) de Jim Jarmusch.

Em 2017, participou em três filmes nomeados para os Óscares: "Três Cartazes à Beira da Estrada", "Foge" e "The Florida Project".

Sem surpresa, a norueguesa Renate Reinsve foi a Melhor Atriz, como a protagonista "de "Julie (en 12 Chapitres)", de Joachim Trier, que relata a história de uma "millenial" em crise existencial em Oslo que procura refazer a sua vida. O filme terá distribuição portuguesa através da Alambique.

A atriz foi a revelação do Festival de Cannes, que deixou a crítica aos seus pés após a exibição do filme a 9 de julho.

"Essa situação surpreendeu-me", admitiu Reinsve à AFP sobre a sua repentina fama.

"Sei que ninguém me viu antes porque é o meu primeiro papel. Fiz muito teatro e poucos filmes ... E sempre pequenos papéis", acrescentou.

Curiosamente, Renate Reinsve estreou-se no cinema num outro filme de Trier, "Oslo, 31 de agosto" (2012).

"Sempre me perguntei por que nunca teve um papel maior", explicou ele. "E disse a mim mesmo: vamos fazer um filme com ela."

Para Trier, a personagem que a atriz interpreta é muito parecida com ela.

"Identifico completamente com ela, já que passei por coisas semelhantes", concordou Renate Reinsve.