Em "No Táxi do Jack", a única longa-metragem portuguesa no Festival de Berlim, seguimos à boleia pelo universo de Joaquim Calçada, taxista em Nova Iorque e desempregado em Vila Franca de Xira, que aguarda impacientemente pela reforma. Por entre burocracias e esperas inconvenientes, o sexagenário "convida" os espectadores para um passeio pelas suas memórias e as vivências que o tornaram um cidadão do Mundo.

O SAPO Mag falou com a realizadora Susana Nobre sobre o seu novo filme, um trabalho que realça a força da oralidade das histórias que nos são reservadas e o prazer de escutar essas recordações.

No Táxi do Jack

De certa maneira, o projeto “No Táxi do Jack” é uma prolongação de obras como “Vida Activa” e “Provas Exorcismos”. Sempre pensara em conceber uma trilogia ou a sua experiência nas Novas Oportunidades e o contacto com Joaquim Calçada levaram-na a ter interesse em continuar o percurso narrativo?

Trabalhei nas Novas Oportunidades com o objetivo de fazer um filme sobre o programa. Um pouco ao encontro daquilo que já tinha feito num filme anterior, o meu primeiro filme, "O que pode um rosto", um filme sobre um hospital público, em Lisboa. Um filme observacional no eixo da relação das pessoas com as instituições. Penso que me equivoquei ao pensar que poderia fazer um filme na mesma distância, mas a trabalhar internamente na instituição como técnica. Não era possível. O lado institucional era muito interessante, mas eu estava demasiado dentro para conseguir apontar a câmara para os meus colegas.
Passei a filmar o que se passava à frente da minha secretária. Sentia-me muito atraída por todo aquele universo – as histórias do trabalho, sobretudo do mundo operário - era a sensação de estar parada num lugar e o mundo todo ir ali dar. Durante esse período cresceu em mim a vontade de fazer um grande projeto ou vários filmes sobre a “história da laboração um povo”. Esta formulação é de Manoel de Oliveira, que tinha um projeto não realizado que se chamava “O Palco de Um Povo”, um vasto programa para um filme sobre a laboração de um povo. Deste grande projeto autonomizaram-se os filmes “O Pão”, "As Pinturas do meu Irmão Júlio" e o “Acto da Primavera”, que fariam parte desse grande documentário.
Durante o período em que trabalhei nas Novas oportunidades queria fazer muitas coisas diferentes, encontrar um meio que desse forma a esse tumulto de ideias de filmes. Mas também estava muito presa à minha secretária e às minhas obrigações como técnica superior, o que me levava, por sua vez, a um estado de grande contenção. "O Táxi do Jack" é um filme que ainda vem desse tumulto de ideias e de não ter uma forma definida para as expressar. Há toda uma sucessão de acontecimentos que a escuta de uma história pode gerar. A ficção está sempre presente na cabeça e no olhar de um realizador.
O contacto com o Joaquim foi o que trouxe a matéria para este filme, bem como a nossa relação de amizade. Não seria possível fazê-lo com uma simples "reperagé" [ação de escolher e visitar espaços a serem usados num filme] de uma semana e uma entrevista de uma hora. É algo que nos implicou muito, ouvir, pensar, pedir para repetir, passear. No fundo, estar disponível para receber.

Não deixo de notar um certo fatalismo, bem presente na personagem do Joaquim como também no tom do filme. E mais na captação de Vila Franca de Xira, anteriormente industrializada, hoje caindo num certo esquecimento. O seu destino é muito ou pouco associável ao seu protagonista? Ou seja, é através de Joaquim que encontrou uma janela para abordar o estado atual da cidade?

Não dirigi a relação com a paisagem com essa intenção. Sabia desde o início que o filme deveria traçar o seu território. Um território onde convergiriam diversas geografias e temporalidades. Joaquim traça no filme o seu próprio atlas, que não é apenas um atlas físico, é também um da consciência, da memória e dos seus fantasmas.

Numa anterior entrevista, referente ao seu filme “Tempo Comum”, mencionou um “ponto de escuta”, uma ligação com as ações “falar” e “ouvir”, dois pontos centrais para o seu cinema. Joaquim é uma figura dotada de histórias, prontas a serem reveladas. Acredita que o seu filme tem a capacidade de ouvi-las?

Acho que ouvir e observar são duas ferramentas ou qualidades muito importantes para fazer cinema. E talvez tenha tentado justapor nos meus planos essa experiência, recolocando o espectador nesse lugar de ouvinte e observador, como se estivesse ali com aquelas pessoas na mesma sala. No “Tempo Comum” procurei fazer isso até um certo limite, e noutros filmes também. Acredito que a ação de um filme pode ser dada pela palavra. Acho que o centro deste filme é a palavra pela voz do Joaquim. Grande parte dos textos são dele, alguns escritos por mim mas a partir das nossas conversas. E depois, um ou outro tirado ao José Rodrigues Miguéis, mas podia ter sido o Joaquim a dizê-los também.

Ao ver “No Táxi de Jack”, confesso que me ocorreu por diversas vezes o mais recente filme de Spike Lee – “Da 5 Bloods” –, onde os atores, envelhecidos, permaneciam iguais nas sequências de "flashback". Ao ver Joaquim na sua igual forma a materializar as suas memórias, não pude deixar de questionar essa mesma recusa pela representação exata e essa experimentalidade para com o tempo e o físico.

Sim, esse trabalho sobre o tempo pode não ter limites. Não queria fazer um filme em sketches, queria que instalasse o seu próprio tempo e espaço. A questão que se impunha era a da composição e das passagens narrativas, em que os vários elementos, com temporalidades e geografias diferentes, se reunissem num mesmo plano de narração. Acho que o estilo "americanizado" de Joaquim lhe dá um semblante de uma certa intemporalidade, como se se pusesse em órbita a atravessar diferentes tempos e espaços como um observador. Como alguém um pouco fora da vida para melhor dar conta dela.

Com o documentário convicto de “Vida Activa”, a docuficção de “Tempo Comum” e um certo experimentalismo das duas dimensões em "No Táci de Jack", acha-se preparada para avançar com um projeto puramente ficcional? Sabendo que, hoje em dia, muitas desses territórios encontram-se diluídos?

Estou a preparar uma longa metragem. Um filme mais romanesco, uma comédia melancólica sobre o luto. Chama-se "Cidade Rabat", o nome da minha rua de infância.

Não posso deixar de lhe perguntar sobre o impacto da pandemia no cinema e esta nova forma de erguer festivais, virtualmente. Acredita que tudo isto é passageiro e uma "primavera cinematográfica" surgirá depois da tempestade?

Acredito. Pode ser que este período tenha sido uma espécie de sabática e que tenha frutos no aprimoramento de algumas ideias e projetos.

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