O festival internacional Curtas de Vila do Conde arranca no sábado, dia em que exibe um dos destaques da programação, a cópia digitalizada de "O Recado", filme de 1971 de José Fonseca e Costa.

O filme foi digitalizado este ano no âmbito do acordo entre a Cinemateca Portuguesa e a Academia Portuguesa de Cinema, e será editado até ao final de dezembro em DVD, além do estabelecimento do 'master' digital, que será usado em Vila do Conde, explicou à agência Lusa o diretor do departamento de arquivo da Cinemateca, Tiago Baptista.

No âmbito desta parceria, em setembro já foi editado em DVD o filme "A Santa Aliança" (1977), de Eduardo Geada, seguindo-se, ainda este ano, "O Mal Amado" (1974), de Fernando Matos Silva, e "A Promessa" (1972), de António Macedo, além de "O Recado".

A sessão no Curtas, marcada para as 21:45 de sábado, primeiro dia de festival, no Teatro Municipal de Vila do Conde, voltará a trazer ao grande ecrã um filme de 1971 que, segundo a sinopse, exibe "um olhar sobre uma classe burguesa no final dos anos 1960".

Se, por um lado, há uma crítica à burguesia lisboeta e "uma espécie de modorra na vida social das personagens", não deixa de ser um filme "muito político", diz Tiago Baptista, numa narrativa que a sinopse apresenta como sendo "sobre classe e sobre poder, num tempo de castrações".

Lúcia, a protagonista interpretada pela "atriz incrível" que era Maria Cabral (1941-2017), ataca "de maneira muito verbal a burguesia lisboeta", além de marcar um dos momentos mais célebres da película: "olha diretamente a câmara e diz 'estão todos mortos'", lembra o diretor do departamento de arquivo.

"É um filme muito político, feito de dentro, criticando a sociedade portuguesa a partir do seu interior, e percebendo também que mecanismos sociais e económicos permitiam que a ditadura existisse e perdurasse. A ditadura não é vista como uma coisa exterior à sociedade portuguesa", acrescenta.

Com argumento de José Fonseca e Costa, que editou e realizou o filme, a música pertence a Rui Cardoso e a fotografia é da autoria de Roberto Ochoa, trazendo à tela um elenco que contava, além de Maria Cabral, então "muito solicitada" quando tinha feito, também, "O Cerco", de António Cunha Telles, com outros nomes, como José Viana, Paco Nieto, João Bénard da Costa, Helena Vaz da Silva e o realizador Luís Filipe Rocha.

É também uma obra que se inscreve no movimento do Cinema Novo português, nas "vagas sucessivas desta renovação do cinema português", ao lado de de outros filmes que "quebram menos as fronteiras do cinema tradicional", e no meio da "avalanche" de estreias internacionais.

Com uma "maneira elíptica de filmar", torna-se num filme "bastante aberto", em que a protagonista é Lúcia, esta mulher que se vê com um "conflito interior, a hesitar entre dois homens, dois estilos de vida e duas visões do país, que é o resistente e o burguês".

Essa narrativa torna-se o "fio condutor" que leva e, por vezes, mascara um filme político com críticas ao sistema e à sociedade, vigentes do seu tempo, encontrando agora "uma segunda vida".

"Não acho, de todo, que digitalizar cinema português dos anos 1970 seja um exercício de nostalgia, é mesmo dar uma segunda vida a estes filmes, com espectadores que nunca os viram, e que os vão ver de maneira muito diferente de como foi visto quando se estreou. Há muito mais gente disposta a gostar de 'O Recado' do que quando se estreou", considera o diretor do arquivo da Cinemateca.

"O Recado", de resto, não exigiu "um trabalho de restauro de imagem ou som muito grande", porque a Cinemateca já possuía "boas matrizes do filme", após um primeiro trabalho de preservação fotoquímica, em 2000.

A digitalização de filmes pela Cinemateca visa "fazer circular o cinema português", e, não tendo "um programa de digitalização bem financiado que permita fazer uns 100 filmes", lembra Tiago Baptista, o departamento vai editando património cinematográfico de todas as fases.

Do cinema mudo ao Cinema Novo, ao documentário e à produção dos anos de 1980, por exemplo, a chave é "fazer todos os anos um pouco de tudo" e chegar a diferentes públicos, com um foco não exclusivo, nos próximos tempos, em "filmes relacionados com a temática do mar", muito marcante no cinema português, que implicará "digitalizar 10 mil minutos, entre longas e curtas metragens", afirmou Tiago Baptista.

Em fevereiro, a Cinemateca assinou um protocolo de apoio, no âmbito do Programa Cultura, financiado pelo Mecanismo Financeiro do Espaço Económico Europeu - EEA Grants, em cerca de 880 mil euros, que lhe permite pôr em prática o projeto "FILMar - Digitalização do Património Cinematográfico", relacionado com a temática do mar.

Além das parcerias para edição de filmes em DVD, como com a Midas Filmes, e a circulação por cineclubes ou outros festivais interessados, a Cinemateca inclui ainda uma plataforma, a Cinemateca Digital, já com "várias centenas de horas de filmes", sobretudo de não ficção e da primeira metade do século XX.

Numa sessão pública na abertura da temporada passada, o diretor da Cinemateca Portuguesa, José Manuel Costa, já salientara a "taxa de preservação muito grande" que a Cinemateca tem empreendido, ao longo do seu percurso, mas alertou também para a necessidade de circulação das obras, para que possam ser vistas "sem pôr em risco a sua sobrevivência", tendo em conta novos suportes e novas tecnologias.

Na altura, José Manuel Costa disse que era urgente constituir um "marco patrimonial" e "digitalizar em alta definição todo o cinema português", aproveitando "a oportunidade única" que a tecnologia fornece, acrescentando que "não tem de ser só um esforço público", já que envolve diferentes agentes, mas defendeu que tem de ser "o Estado a tomar a iniciativa" e a estabelecer as linhas orientadoras.

A 28.ª edição do Curtas de Vila do Conde arranca no sábado e contempla 261 filmes, exibidos até 11 de outubro naquela cidade do distrito do Porto, mas também no Porto, em Lisboa, em Faro, e num serviço de 'streaming' dedicado.