"Mudei o plano inicial 30 vezes", salienta o autor de "O Falcão e o Soldado do Inverno" numa entrevista via Zoom. Argumentista e produtor executivo de séries como "Empire", o norte-americano estreou-se nas sagas de super-heróis através da segunda aposta da Marvel disponível no Disney+ - que sucede a "WandaVision", também deste ano.
"Juntei-me a uma família criativa. No início foi desconfortável, mas quando me adaptei, percebi que iria ser uma grande experiência única", explica ao recordar a integração na equipa responsável pelo Universo Cinematográfico Marvel, que começou por adaptar personagens da BD ao grande ecrã mas que encontrou no pequeno um meio tão ou mais viável.
"Não nos dizem nada sobre o que está a acontecer no Universo Cinematográfico Marvel. Só nos dizem para criarmos e acompanham o nosso trabalho. Mas se, por exemplo, o Visão enlouquecer e eu quiser colocar o Sam [Wilson, o Falcão] a enfrentá-lo, podem alertar-me de que ele não vai estar disponível para aparecer nesta série, caso já esteja noutra série ou filme", exemplifica.
"Trabalho há 20 anos como argumentista, mas nunca como na Marvel", confessa. "Colocam-nos numa bolha, mas nessa bolha, ao nosso lado, está alguém que sabe de tudo o que se está a passar. E assim podemos manter as nossas ideias sem comprometer o plano geral".
Essa "bolha" criativa implicou cedências e ajustes, embora alguns elementos tenham sido preservados. "Mudou muito, mas o conceito nunca mudou, a relação entre o Sam e o Bucky e o modo como queríamos desenvolvê-la. Isso guiou-nos durante todo o processo".
"Há muito território comum entre qualquer criador negro e uma personagem negra"
Embora o seu percurso profissional só agora chegue ao universo dos super-heróis, Spellman confessa ao SAPO Mag que já é fã de muitas personagens da Marvel desde a infância. "Começou tudo com um grupo de miúdos pobres de Berkeley que roubava BD. Conheci o meu melhor amigo ao roubar BD, guardando-a na mochila dele, e ele nem sequer me conhecia. Foi assim que nos tornámos próximos. Mas não estou a encorajar os miúdos a roubar BD", esclarece.
"Venho de uma cidade muito ligada à BD, havia lojas especializadas icónicas nos anos 1980 ou mesmo antes. Os meus super-heróis favoritos eram o Homem-Aranha - para mim, era o centro do universo - e personagens negras como o Deathlok e o Luke Cage. Costumávamos desenhá-los, passei grande parte da minha infância nessas lojas", lembra.
Apesar de Deathlock e Luke Cage não serem personagens esperadas em "O Falcão e o Soldado do Inverno", Spellman teve oportunidade de abordar outras figuras negras na minissérie, desde logo um dos protagonistas. "O Sam é afro-americano, é negro e é do sul. E nada disso é acidental. (...) Não queríamos que ele se limitasse a fazer continência à bandeira ignorando todas as tensões que fazem parte desta nação. E há personagens na série que vão torná-lo ainda mais pressionado", antecipa.
"Há muito território comum entre qualquer criador negro e uma personagem negra. É muito difícil de o descrever. Não quer dizer que sejamos monolíticos, há sempre perspetivas diferentes, mas há quase realidades que já todos enfrentámos", assegura.
"Falei muito com o Anthony [Mackie, ator que encarna o Falcão] e tudo o que desenvolvemos para o Sam foi natural e orgânico e necessário", diz, salientando uma das primeiras cenas em que a questão racial se evidencia. "Toda a gente da minha família e do meu círculo de amigos que é negra adorou a cena com o Rhodey [James Rhodes, a Máquina de Guerra] e o Sam. E todos os argumentistas negros da série sabiam que iriam adorá-la. Simplesmente sabemos. Não sei explicar porquê, mas sabemos".
Um episódio de cada vez
No segundo episódio, "O Falcão e o Soldado do Inverno" aborda o racismo de forma direta, em mais de uma ocasião, e Spellman sublinha que essa liberdade talvez não tivesse sido possível sem o contributo de outro super-herói da Marvel. "'Black Panther' revolucionou tudo, não só na Marvel mas em todo o lado, porque provou que a comunidade negra e as pessoas de comunidades marginalizadas podiam ser heróis internacionais. Porque o mundo abraçou esse filme, e era decididamente negro", elogia.
O racismo e outras discussões que a série traz à mesa (como a disseminação de teorias da conspiração online) são potenciadas pelo formato semanal da minissérie, em vez da estreia simultânea dos seis episódios, considera o criador. "Fiquei feliz por ser semanal. Ganhamos algumas coisas com o binge[-watching], experiências intensas, podemos ver uma série ao ritmo que quisermos, e isso é ótimo. Mas o formato semanal cria uma experiência completamente diferente, gera expectativa e, mais importante, gera conversa. (...) Em vez de uma conversa gigante em torno da série, cada episódio permite abordar tópicos de conversa diferentes".
Spellman acrescenta que a forma como cada episódio foi concebido também é mais compatível com um modelo de estreia semanal. "Agora há uma tendência na televisão que passa por as esticar uma narrativa, como se as séries fossem um filme mais longo. Mas nós queríamos fazer um híbrido. Por isso, cada episódio tem a duração comprimida e a urgência de um filme. Há coisas que têm de acontecer e as relações e arcos de personagens desenvolvem-se até chegar a momentos de viragem, tal como num filme". As muitas mudanças para se adaptar à sua "bolha" no Universo Cinematográfico Marvel não foram, por isso, em vão. "Acho que conseguimos encontrar um formato único que nos permite mergulhar a fundo nestas personagens e não apenas chegar até elas".
Trailer de "O Falcão e o Soldado do Inverno":
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