"Os Beatles sentiam-se muito seguros neste espaço, foram acarinhados e encorajados a criar. Estavam aqui para fazer a melhor música", salienta Mary McCartney numa mesa-redonda por Zoom na qual o SAPO Mag esteve presente. E a fotógrafa britânica que se estreou na realização com o documentário centrado no espaço em causa sabe do que fala. Afinal, enquanto filha do beatle Paul McCartney e da teclista e também fotógrafa Linda teve acesso privilegiado a Abbey Road desde a infância.

"Vivíamos aqui perto e os meus pais estavam a gravar com os Wings quando era criança. Encontrava-os muito aqui ao almoço ou depois das aulas", recorda. E aos poucos notou que o tal espaço não era apenas local de trabalho dos pais, sobretudo de Sir Paul. "Mais tarde, comecei a reparar nos artistas que estavam nas fotos à entrada, nos anos 1970. Kate Bush, Pink Floyd... Fui percebendo que era um espaço pelo qual muita gente se interessava".

Abbey Road

Desafiada pelo produtor John Battsek ("À Procura de Sugar Man", "Listen to Me Marlon") a criar um documentário a propósito dos 90 anos dos estúdios, celebrados em 2022, a britânica começou por encarar a proposta com relutância. "Inicialmente pensei que talvez não fosse boa ideia começar com um tema tão próximo de mim e da minha família. Mas depois vi algumas fotos minhas em criança e lembrei-me que os melhores documentários que vi são sobre realizadores que se debruçaram sobre algo próximo do seu coração", recorda.

De qualquer forma, a ideia de se aventurar num documentário já a perseguia há algum tempo, o que acabou por tornar este o desafio certo na altura certa. "Alimentava a ideia de fazer um documentário, mas ainda não sabia sobre o quê, até porque estive muito ocupada nos últimos anos. Apresentei um programa de culinária para o Disney+, preparei um livro de culinária, uma exposição de fotografia... até que recebi um e-mail do produtor a convidar-me para realizar o filme", explica.

Beatles
Beatles

Artistas e espectadores

O salto da fotografia para a realização nem foi assim tão grande, confessa a britânica. "Há semelhanças entre ambas. É uma espécie de conversa, entrevistar ou fotografar pessoas. Tanto na fotografia como nos filmes, tenho sempre o espectador em vista", garante. E foi nos espectadores que pensou ao aceitar a proposta, assinala. "Decidi fazer este documentário para que as pessoas que não possam visitar Londres ou os estúdios Abbey Road possam vê-los e descobrir como é estar neles. E ouvir músicos e as pessoas que cá trabalham. Tento convidar o público a entrar, tal como faço com o meu trabalho fotográfico. Tento fazer com que o público se sinta parte deste diálogo".

Adepta do formato documental, Mary McCartney agradece "ter tempo para explorar alguma coisa e dar a conhecer a sua história" através deste filme. "Trabalhar com um montador foi um pouco complicado, mas intrigante, adorava fazer mais", sublinha, lembrando o processo de aprendizagem ao longo deste mergulho. "Não conhecia bem a história do estúdio, não sabia que tinha 90 anos. Não sabia que os Beatles tinham gravado tanto em Abbey Road".

Paul McCartney
Paul McCartney

Mas nem só dos Beatles se fez a história deste espaço mítico, como "Se Estas Paredes Cantassem" também deixa claro. Além de ter entrevistado o pai e Ringo Starr, a realizadora falou com Elton John, Roger Waters, John Williams, Noel Gallagher e Liam Gallagher ou Celeste, entre outros ilustres. "Julgo que estes artistas são muito bem-sucedidos porque levam a sério o seu trabalho num estúdio. Este não é um espaço para festejar, é para criar música que move paixões", aponta. "Hoje em dia, qualquer pessoa pode gravar em qualquer lado. Vir aqui implica um investimento na gravação e tirar partido essa experiência para tentar fazer música incrível".

Mais do que apostar no formato de entrevista, a britânica procurou estimular conversas com os convidados. "Queria que fossem casuais e informais. Foi muito descontraído, tentei fazer com que toda a gente se sentisse à vontade". Mas houve uma que a obrigou a uma atenção redobrada. "A entrevista com o meu pai foi muito importante porque a música dos Beatles é muito importante para a história dos estúdios Abbey Road. Tentei prepará-la muito bem, tentar fazer com que estivesse uma guitarra ao pé dele para poder tocar alguma coisa, se lhe apetecesse".

Celeste

Dos Beatles a Celeste

Apesar de estar próxima do universo musical desde sempre, a realizadora assinala que não considerou seguir esse caminho. "Nunca quis ter um percurso na música, mas adoro ter músicos à minha volta. Toco dois acordes de guitarra e é isso. (risos) Criativamente, sempre me interessei mais pelas artes visuais. Olho para a vida como se fosse uma fotografia. Estou sempre a captar a realidade de forma visual", compara. "A minha mãe ofereceu-me uma câmara quando era mais nova, encorajou-me a seguir o meu caminho", recorda.

Dominado por memórias de veteranos, "Se Estas Paredes Cantassem" despede-se com os olhos (e os ouvidos) no presente e numa hipótese de futuro. "Há alguns documentários sobre estúdios muito bons, mas que se centram em espaços já fechados ou que já não têm a vida de outros tempos. Por isso, ao terminar, quis dizer que este continua a ter um grande impacto hoje", nota a realizadora. "E encontrei a Celeste, já a tinha fotografado algumas vezes e achei-a muito emotiva. Julgo que é uma artista genuína, muito eloquente na forma como fala sobre a sua música. Penso que faz todo o sentido terminar o documentário com ela, com o coração e alma que quis imprimir. Até porque ainda é um estúdio muito movimentado. Conseguir agendar entrevistas e filmagens lá foi um desafio".

A conversa com os jornalistas, no entanto, volta invariavelmente aos 'fab four' de Liverpool quando a britânica é questionada sobre a sua obra musical de eleição nascida em Abbey Road. "'A Day in the Life', dos Beatles. São duas canções juntas, duas pelo preço de uma. E tem aquele crescendo orquestral, uma sensibilidade clássica, o sentido de espaço, os efeitos sonoros, acho isso muito Abbey Road. E a carga inovadora na altura... Sim, é essa a minha escolha. Mas adoro tantos... Quer dizer, o Fela Kuti gravou aqui três álbuns. Se calhar, tenho de escolher um desses".