“Quando passamos na estrada, achamos que o Caramulo é só uma vila esquecida no cimo da serra, mas a verdade é que tem um museu lindíssimo, muito bem organizado e com obras maravilhosas a serem vistas, como este Picasso”, disse à agência Lusa a brasileira Helena Sardinha, que vive em São Paulo, enquanto contemplava o óleo de 1947, que o próprio pintor ofereceu ao fundador do museu, Abel de Lacerda.

Helena Sardinha tinha como cicerones os primos Sónia e Henrique Pombo, residentes em Aveiro e que, apesar de já terem visitado o museu, decidiram mostrar-lhe os tesouros que se lembravam existirem no Caramulo.

“Arrisco-me a dizer que a maior parte dos portugueses não sabe sequer que existem peças de Picasso em Portugal, muito menos aqui, num museu no Caramulo”, considerou Henrique Pombo, frisando que se trata de “um museu tão rico que merecia outra afluência”.

O óleo sobre tela “Natureza Morta”, de Pablo Picasso, partilha a parede com a aguarela sobre papel “Cavaleiro romano na Ibéria” (1954), de Salvador Dali, e tem à sua frente a tapeçaria “La Mare aux Étoiles” (1955), de Jean Lurçat, entre muitas obras que podem ser vistas na sala dedicada à arte europeia do século XX.

Na mesma sala, expostas num móvel, estão mais quatro peças de Picasso: as cerâmicas “Mulher coruja” (1951), “Pássaro n.º 82” (1963) e “Cena de Toureiro” (1949), mais a faiança policromada “Mulher-garrafa” (1948), tendo as últimas três sido doadas ao Museu do Caramulo.

Nos anos 50 do século XX, num Portugal pouco desenvolvido, Abel de Lacerda teve o sonho de criar uma coleção de arte no meio de uma serra, na antiga estância sanatorial do Caramulo, e conseguiu convencer notáveis a doarem obras para esse fim.

“Ele gostava mais de arte antiga, não era tanto fã de arte contemporânea mas, ainda assim, reconheceu a importância de ter este tipo de obras no museu, porque a linha que ele definiu foi a de ter obras de todas as épocas e em todos os tipos de suportes”, contou à agência Lusa o diretor do Museu do Caramulo, Tiago Patrício Gouveia.

Segundo o responsável, “naquela altura, Picasso já era alguém de quem Abel de Lacerda achava que devia ter uma obra no Caramulo” e pediu ao seu irmão, João, para ir falar com o pintor espanhol.

Essa primeira tentativa falhou, mas Abel de Lacerda não desistiu e foi ao Sul de França bater-lhe à porta de casa.

“Conseguiu falar com o artista, contou-lhe o que estava a fazer no Caramulo e ele imediatamente disse que queria contribuir para o projeto e ofereceu-lhe esta ‘Natureza Morta’”, recordou Tiago Patrício Gouveia, numa altura em que passam 50 anos da morte de Pablo Picasso.

O diretor do Museu do Caramulo mostrou-se convencido de que, nessa conversa, “devem ter vindo ao de cima os dotes de persuasão de Abel de Lacerda, que era um grande senhor, bem falante”.

A doação ficou imediatamente garantida e existe no museu uma prova desse encontro: uma fotografia de Abel de Lacerda ao lado de Picasso, enquanto este assinava a obra que iria doar.

“Picasso já tinha um valor comercial considerável na altura e Abel de Lacerda viu que ele tinha imensas obras espalhadas pela casa, encostadas à parede e perguntou-lhe se não tinha medo que alguém entrasse e as roubasse. Picasso disse que não havia problema, porque nenhuma delas estava assinada”, contou.

A tela que Picasso doou integra-se num período mais sombrio das suas obras, sob a influência do drama sangrento da Guerra Civil de Espanha, da Segunda Guerra Mundial e da ocupação de França pela Alemanha Nazi.

Tiago Patrício Gouveia explicou que “este somatório de guerras levou Picasso a fazer estas obras mais sombrias, mais dolorosas”.

A “Natureza morta” expressa uma metáfora da morte, através do “crânio humano de mandíbula deformada e desmesurada em agonia”, ao lado de alhos-franceses “interpretados pelo próprio artista como alusões a ossos cruzados”.

“A esta harmonia de brancos, negros, ocres e verdes alia-se a pequena mancha castanho-avermelhada e, por isso, otimista dos frutos eriçados, imagem da vida que se renova e recomeça”, refere a descrição colocada junto ao quadro.

Com a morte prematura num acidente, em 1957, Abel de Lacerda não teve tempo de ver nascer o museu. Foi o seu irmão, João de Lacerda, que deu forma ao sonho, em tempo recorde.

O edifício foi construído em 1959, tendo sido o segundo em Portugal a ser erguido de raiz para museu.

Depois de, certo dia, ter comprado um Ford T que era praticamente sucata, João de Lacerda deu início à coleção de automóveis antigos que, juntamente com a coleção de arte, atrai anualmente milhares de visitantes ao Caramulo.