A questão das reuniões e dos “revivals” é sempre polarizante entre os amantes de música. Se uns as consideram uma oportunidade para rever os seus artistas preferidos e ter uma última hipótese de cantar “aquela música” a plenos pulmões, outros torcem o nariz a estas reencarnações, considerando-as irrelevantes e com os artistas em questão sem a pujança de tempos idos. Ou pior, são entendidas como uma forma desonesta de sacar uns trocos a fãs indefectíveis e/ou ingénuos. É bem verdade que há casos merecedores de repúdio, como aquelas bandas que anunciam continuamente digressões de despedida (Rolling Stones e Scorpions, estou a olhar para vocês), mas há que saber separar o trigo do joio para não incorrermos em injustiças.
Tendo isto em conta, os AlMckay Allstars, em modo Earth, Wind & Fire Experience, mostraram ser um conjunto reunido para celebrar o repertório dessa seminal banda e não para viver às custas do seu legado. Durante perto de duas horas, os AlMckay Allstars mostraram ter entrega e energia, aliadas à muita experiência dos seus músicos, notáveis e, passo o cliché, dignas de fazer corar muita banda com metade da idade. O conjunto, pela primeira vez em Portugal, subiu ao palco do EDP Cool Jazz Fest na passada sexta-feira, que não pareceu ser o local indicado para uma estreia que viu os Jardins do Palácio do Marquês de Pombal encherem para apenas metade da sua capacidade. Mas já lá vamos.
Para aquecer esta típica noite fria num atípico verão, os Da Chick trataram de entreter as hostes durante 45 minutos. O projeto, encabeçado por Da Chick herself (Teresa Freitas de Sousa de seu nome), existe já há cinco anos, aliando os sons do funk e da disco a um ADN algures entre a eletrónica e o hip-hop. A Da Chick juntam-se o produtor Mike El Nite, a dupla de dançarinos Da Boyz e o trio de sopros Bizu Hornes, que tratou de dar vivacidade à fonte sonora exclusivamente digital da turntable.
A prestação teve resultados mistos. O trio de sopros esteve absolutamente irrepreensível (e ainda teve o condão de mandar uma piscadela de olho aos Kool & the Gang, tocando o inicio da Hollywood Swinging), os Da Boyz foram elétricos em cima do palco com as suas coreografias e a Da Chick esteve cheia de atitude (não obstante o seu agudo timbre de voz, que não é para todos). O problema aqui foi a sonoridade ser um pouco moderna demais para este festival. Mesmo prestando uma sincera homenagem às décadas de 1970 e 1980, as sensibilidades mais ligadas à electrónica em músicas como a mais relaxada Flowering ou a portentosa I Say, que roça o house dos anos 1980 com os seus beats potentes, fizeram notar um certo gap geracional com um público de famílias com os seus petizes.
O facto de Da Chick encarnar uma persona que apenas fala em inglês e usa palavrões sem pudor (tendo dito “Fuck Y’all” quando algumas pessoas torceram o nariz ao facto de se exprimir na língua anglo-saxónica) não ajudou nada a criar empatia. Aliás, os raros momentos em que falou em português fizeram notar essa diferença, especialmente quando pediu ao público para saltar e este, em boa escala, acedeu. Apesar de tudo, músicas como Lotta Love, Disco Freako e especialmente Cocktail, caíram bem no goto dos presentes, com grooves convidativos e daqueles sintetizadores que transpiram Verão pelos poros, a mostrarem o porquê dos Da Chick terem sido escolhidos para esta abertura. Para finalizar, tocaram um pouco de Sossego, clássico da Disco brasileira de Tim Maia.
Era agora a hora de AlMckay e companhia subirem ao palco. O lendário guitarrista, um dos compositores e produtores chave na melhor fase dos EW&F, muniu-se de mais 12 músicos para um espetáculo que não foi nada menos do que um destilar de clássicos. Mas atenção, que quem esperava ver Maurice White e outros membros originais dos EW&F deve ter ficado desapontado, já que destes 12, apenas o trompetista Michael Harris foi membro da banda. Isso, contudo, não menoriza este conjunto, composto por ilustres desconhecidos que já passaram por bandas como os Doobie Brothers, Tower of Power e Barry White.
O concerto começou de pé direito, com um clássico como Serpentine Fire a obrigar os presentes a abanar as ancas ao boogie irresistível. É, no entanto, necessário falar de um dos maiores problemas da noite. Destinar metade da plateia a lugares sentados num concerto de funk parece ter tanto de pouco prático como de pateta. É evidente que, se com da Da Chick, a malta das filas da frente nem se deu ao trabalho de mexer uma palha, já Tim Owens, o “líder” dos três vocalistas dos Allstars, não esteve a meias medidas e disse aos mais próximos do palco que, se não se levantassem, haveria gente da plateia em pé que não se importaria de os substituir. Esta “reprimenda” surtiu efeito, mas não diminiu a empatia entre o público e Owens, que soube ser um mestre-de-cerimónias.
Mais importante do que ser tecnicamente proficientes, o que deu gosto ver foi o quanto estes senhores se divertem em palco. Por entre movimentos de dança sacados do baú, aqueles da Soul Train que só estes senhores é que têm autorização de fazer e não cair no ridículo, o alinhamento foi bem equilibrado entre hits que puxam para a dança febril e contagiosa e aquelas baladas melosas tão típicas dessa era onde se podia ser foleiro à vontade. Depois da swingada cover de Got To Get You Into My Life (original dos Beatles), da festiva Saturday Night e do hino de empowerment que é Shining Star, entrámos numa fase mais contemplativa da noite. Apenas acompanhado pelo coaxar dos sapos, o teclista Bem Dowling quebrou o silêncio com um prolongado início de After the Love is Gone. A música, que mais uma vez demonstrou a perfeita dinâmica entre as vozes de Devere Duckett, Claude Woods e Tim Owens, desembocou depois em Reasons, onde Owens foi senhor absoluto. Seguindo num extenso improviso (típico nestas Big Bands), Reasons teve o seu apogeu num duelo entre os fraseados do saxofone de Ed Wynne e o falsetto impecavelmente controlado de Owens, confronto esse obrigou todos os presentes a responderem em aplausos efusivos.
Até ao fim do concerto, a banda tocou várias canções em formato de medley, quase sem paragens. O baixo bem quente da esperançosa In the Stone deu lugar à promessa efectiva de um destino glorioso em Fantasy (provavelmente o melhor refrão da noite). Veio depois um combo letal de Jupiter e Getaway, frenéticas nas variações súbitas da secção de sopro (qual metralhadora de notas musicais). Magic Mind e Let Your Feelings Show mantiveram os níveis de Groove desta nave do Funk bem altos, até que chegámos ao clássico absoluto dos EW&F: September. A reacção foi a exactamente esperada, coros a uma só voz e mãos no ar a abanar em sincronia.
Como tantos outros, os Allstars despediram-se do público português para logo a seguir voltarem para o encore. Depois do rol de agradecimentos da praxe e de oferecerem um CD a uma menina que o veio receber ao palco, AlMckay e o seu gang puxaram pela sua costela mais disco e tocaram aqueles dois hinos da laca e das calças à boca-de-sino que são Boogie Wonderland e Let’s Groove para fechar a notie. Não obstante os problemas atrás descritos, este foi um serão de grande descontração e divertimento, adjetivos sinónimos a estes AlMckay Allstars. O conjunto tem na sua proa um guitarrista que nem uma única vez se entregou aos prazeres egocêntricos da masturbação técnica que tantas vezes empestam a indústria musical. AlMckay mostrou humildade em querer ser só mais um dos músicos desta grande banda que apenas se diverte a tocar música por esse mundo fora. “We just love music” disse Owens a certa altura da noite. A frase está incompleta: não só amam música como fazem os outros amá-la também.
Texto: António Moura dos Santos/ Fotografias: Mariana Stoffel
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