SAPO On The Hop: Qual o significado e o motivo da escolha do título do vosso novo álbum ao vivo, "Nós Somos Aqueles Contra Quem Os Nossos Pais Nos Avisaram”.
Adolfo Luxúria Canibal: Este título faz referência a um ponto de chegada – é por isso que só aparece na contracapa do disco e não na capa, que é onde normalmente se encontra o título. O que aparece na capa é o ponto de partida, o espetáculo que deu origem ao disco. Um espetáculo sem nome, apenas anunciado como a soma de Mão Morta e Remix Ensemble. O espectáculo foi concebido como uma construção, o que se percebe pelo cenário cru, com andaimes a servirem de decoração. Nessa construção não é atribuída qualquer predominância a nenhum dos grupos, não há um grupo acompanhado por outro mas sim dois grupos em simultâneo – daí a ideia de soma, consubstanciada na representação gráfica dos dois grupos ligados por um sinal +. Um mais um, em igualdade de circunstâncias. Havia um guião, planos de obra, um objetivo, mas o que resultaria desse espetáculo era uma incógnita... Porque essa igualdade de circunstâncias encenava o confronto de dois universos culturais distintos, de duas práticas musicais antagónicas. De um lado, os Mão Morta, com o seu rock maturado na garagem, a encarnarem a música popular e a baixa cultura. Do outro, o Remix Ensemble, com os seus pergaminhos certificados no conservatório, a representarem a música erudita e a alta cultura. Dois mundos separados, de costas voltadas, e imbuídos de preconceitos e desconfianças mútuas. O disco é o registo desse primeiro embate ao vivo, que teve lugar no Theatro Circo. E o que dele resultou, como se constata ao ouvir o disco, é a ultrapassagem dessas diferenças – da desconfiança, do preconceito e da xenofobia musical que fecundam o pensamento instituído em cada um desses universos. Daí o ponto de chegada, a conclusão humanista que serve de título: “Nós Somos Aqueles Contra Quem os Nossos Pais nos Avisaram”! Como que a dizer: «Afinal não há motivo para medos e desconfianças. Eles são como nós e nós como eles!».
Como reagiram perante o pedido do Theatro Circo, que é o mais prestigiado teatro bracarense, ou seja, da cidade das vossas origens?
O pedido do Theatro Circo foi para apresentarmos um espetáculo especial para encerrar o ano de comemorações do centésimo aniversário da sala e, como é óbvio, deixou-nos muito honrados. Mas também conscientes do peso da responsabilidade dessa tarefa. Já tínhamos criado o espectáculo “Maldoror”, igualmente por encomenda do Theatro Circo, para assinalar a reabertura da sala no final de 2006 (após seis anos de portas fechadas para obras de requalificação e modernização), pelo que o novo espetáculo teria de ser, no mínimo, tão impactante quanto o fora “Maldoror”. E isso não era tarefa fácil… Mas rapidamente consideramos que uma apresentação em conjunto com o Remix Ensemble poderia ser a solução para esse espetáculo especial, que o inédito da junção iria certamente dignificar tão marcante efeméride, e foi essa proposta que fizemos ao Theatro Circo, que logo a adoptou.
De onde surgiu a ideia da vossa nova adaptação em palco e da parceria com o Remix Ensemble?
A ideia surgiu a partir do momento em que houve um convite do Theatro Circo para apresentarmos um espetáculo especial. Mas não surgiu do nada! Ela já andava no ar, pois desde 2012 que existia uma apetência para nos aventurarmos pelos terrenos da música erudita contemporânea. Foi nessa altura, quando do encerramento da ‘Capital Europeia da Cultura – Guimarães 2012’ com o espetáculo de comunidade “Então Ficamos…”, que conhecemos o maestro Peter Bergamin. E das longas conversas que mantivemos com ele descobrimos não só uma enorme afinidade musical como também um mesmo percurso adolescente pelos mesmos ídolos e tipologias musicais. Criou-se uma empatia tão grande que ficamos com vontade de com ele partilhar espetáculos futuros, em que cruzássemos rock com música erudita contemporânea. Assim, o convite do Theatro Circo veio abrir a possibilidade dessa vontade ser concretizada, ainda que sem a participação de Peter Bergamin. Mas para tal acontecer, teria de ser realizado com o Remix Ensemble, que é o único agrupamento nacional especificamente vocacionado para a música contemporânea, com capacidade de se aventurar por outros territórios e tipologias musicais. E assim surgiu a parceria com o Remix Ensemble e a Casa da Música.
Foi difícil pôr em prática as ideias que tinham para o espetáculo? Conseguiram atingir as vossas expectativas?
Eu diria que foi muito fácil! Mas isso porque houve o trabalho extraordinário do Telmo Marques. Quando ficou definido e aceite que o espectáculo de encerramento das comemorações do centésimo aniversário do Theatro Circo seria uma intervenção dos Mão Morta e do Remix Ensemble sobre o repertório dos Mão Morta, tornou-se necessário definir os termos em que essa intervenção se iria realizar e criar as bases para a mesma poder acontecer. Isso teria de ser feito por alguém que estivesse por dentro das diferentes tipologias e das práticas musicais em causa. Fazendo uma breve auscultação pelo universo erudito, tornou-se evidente que Telmo Marques seria a pessoa certa, pelo seu percurso académico e pela sua apetência para experimentar e cruzar distintas linguagens musicais. E no primeiro encontro que tivemos, para expor o pretendido e as ideias que tínhamos em mente, ficámos de imediato convencidos da justeza da escolha! De facto, Telmo Marques percebeu logo o que estava em causa e a partir daí a sua capacidade criativa fez o resto – de tal modo que, no final, as nossas expectativas estavam, mais do que atingidas, completamente ultrapassadas!... Não tínhamos imaginado que esta experiência pudesse chegar tão longe e com resultados tão gratificantes.
Tendo em conta a vossa extensa carreira e a vasta seleção de faixas por onde escolher, houve uma lógica por detrás das músicas escolhidas para este novo álbum ao vivo? Simbolismo, gosto pessoal…
Sim, houve uma lógica. Essa lógica não teve nada a ver com simbolismos, manifestações de gosto ou mesmo ideias de representatividade da discografia editada – a lógica cingiu-se exclusivamente à capacidade de transmutação ou permeabilidade dos temas, tendo em conta que iriam servir para o embate e expressão de duas práticas musicais distintas. Foram assim escolhidos os temas do repertório dos Mão Morta considerados mais aptos e com mais potencialidade para serem explorados musicalmente, numa perspectiva de música contemporânea. Foi com essa ideia que o Miguel Pedro e o António Rafael fizeram uma pré-seleção, sobre a qual incidiu a selecção definitiva do Telmo Marques, que depois orquestrou e arranjou os temas escolhidos.
Apesar de vosso novo álbum ser, maioritariamente, uma compilação de temas já conhecidos, "Abertura" é a exceção. Porquê?
M: Telmo Marques embrenhou-se de tal modo no trabalho de orquestração para o Remix Ensemble e entusiasmou-se tanto com o material de base de que dispunha, que teve vontade de compor uma peça nova a partir de citações dos diversos temas desse material. Era algo que inicialmente não estava previsto, por isso o Telmo perguntou-nos o que achávamos e nós achamos ótimo. E assim nasceu a “Abertura” para o espetáculo, que serve de introdução à obra que a seguir vai ser interpretada e também de apresentação do Remix Ensemble e das potencialidades sonoras da sinfonietta, que nessa “Abertura” toca em solitário, entrando os Mão Morta, gradualmente, apenas no tema seguinte, “Humano”.
Como foi participar no projeto "T(h)ree”, que nasce de colaborações entre artistas portugueses e asiáticos?
M: Foi engraçado, quase um jogo tipo ‘cadavre exquis’. Recebemos um ficheiro da Coreia do Sul, de Soo Jung Kae, só com um piano gravado, com um tempo estranho e pouco certo, a que acrescentámos voz e uns sons eletrónicos. Depois remetemos o ficheiro para o Japão, para Sachiko Fukuoka, que lhe acrescentou mais voz e outros sons. Isto sem qualquer conversa prévia, sem qualquer explicação, sem traduções, nada – apenas o ficheiro. No final, tínhamos o tema “Um Último Beijo” que em 2014 saiu no disco “T(h)ree Vol. III – From Portugal to Japan and South Korea”.
Com tantos projetos e novidades recentes, qual é o próximo passo?
Estamos, como sempre, embrenhados no presente. E o presente, no caso, são os concertos, que a partir de junho se desdobram em dois tipos diferentes: os concertos normais, com a nova seleção de repertório que temos apresentado no decorrer deste ano de 2017, e os concertos comemorativos dos 25 anos da edição do disco “Mutantes S.21”, em que tocamos todos os temas desse álbum e ainda outros que com eles se relacionam tematicamente e, sobretudo, em que apresentamos os temas com a projeção animada de ilustrações especialmente desenhadas para os mesmos por alguns dos melhores ilustradores portugueses, nomeadamente Alex Gozblau, André Coelho, André Covas, Ângela Vieira, António Gonçalves, Esgar Acelerado, João Lemos, João Maio Pinto, José Carlos Costa, Marco Mendes, Marco Moura, Miguel Ogoshi, Raquel Costa, Sebastião Peixoto e Tiago Manuel. Ainda a propósito dos 25 anos de “Mutantes S.21”, está também prevista a reedição do disco, em CD e em vinil, e uma edição especial limitada para o record store day 2017, a 22 de Abril, de um etched single com o tema “Budapeste (Sempre a Rock & Rollar)”. Mais para o fim do ano, se tudo correr bem e o tempo não nos faltar, contamos ter um novo disco de originais…
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