“Na feira [do livro] de Bolonha, falei com russos que conseguiram sair, outros que estão a viver no estrangeiro e o que me contaram é que o livro está a circular, mas não está à vista. É uma coisa quase subterrânea. As pessoas, se forem à editora, podem comprá-lo, mas nas feiras e livrarias não é suposto que esteja à mostra”, explicou André Letria.

“A Guerra”, editado em Portugal em 2018, é um dos mais premiados livros ilustrados de André Letria e do pai, José Jorge Letria, e está traduzido e editado em vários países, nomeadamente Alemanha, Coreia do Sul, França, Polónia, Espanha, Itália e Grécia.

Na Rússia, quando ocorreu a invasão militar na Ucrânia, a 24 de fevereiro de 2022, o livro estava na gráfica e pronto a editar, "o que aconteceu é que o impediram de sair", porque a palavra 'guerra' estava proibida.

A editora Samokat, que já tinha editado anteriormente outros dois livros de André Letria – “Mar” e “Teatro”, coassinados com Ricardo Henriques -, ficou com o projeto editorial suspenso, assim como a possibilidade de uma exposição de ilustração.

André Letria vence Prémio Nacional de Ilustração com

André Letria conta agora que percebeu que a editora, ao fim de alguns meses, conseguiu imprimir e publicar o livro, à revelia, depois de ter visto partilha de imagens da versão russa na rede social Instagram.

Na Feira do Livro Infantil e Juvenil de Bolonha, que terminou no dia 9 em Itália, o caso da edição de “A Guerra” na Rússia foi mencionado num debate sobre censura na literatura para crianças e jovens.

Nos contactos com outros editores e autores naquela que é considerada a mais relevante feira de negócios para a ilustração e publicação para os mais novos, André Letria confirmou que “o livro circula e vende-se”, ainda que de forma discreta.

“A Guerra” conjuga duas narrativas complementares – de texto e ilustração – sobre o conceito de guerra, sem rostos, sem tempo e sem local, tudo retratado em tons escuros, castanhos e cinzentos.

Com pouco mais de uma dezena de frases de José Jorge Letria, o ilustrador recorre a elementos que ajudam a personificar uma ideia de conflito: há bombas, tanques e aviões de guerra, um líder que destrói livros, uma floresta dizimada, uma cidade destruída,

“O livro, quando começou a ser pensado, nasceu mais da sensação de que o mundo está perigoso e não tanto a pensar em regimes em particular, mas na ascensão do autoritarismo, dos ataques à democracia. Todas essas coisas eram os sinais mais visíveis naquela altura”, disse André Letria.

Além da Rússia, houve outro território – a China - em que o livro teve percalços na sua publicação, mas cujo episódio não surpreende André Letria.

O livro chegou a concorrer a um prémio literário na China, mas acabou retirado pelo júri chinês, sem qualquer justificação, acabou por ser publicado no território e “circula normalmente”.

“Parecem coisas contraditórias, mas é um retrato das ditaduras hoje em dia, se calhar as coisas são mais permissivas numas coisas e menos noutra. (…) Aquilo da China não me surpreendeu nada. Nem sequer me senti indignado. Não vale a pena denunciar uma situação que toda a gente conhece”, disse.

André Letria, 50 anos, autor há mais de trinta anos e fundador da editora Pato Lógico, considera que a arte não deve ser panfletária.

“Não gosto que a arte seja uma coisa de panfleto, mas ao mesmo tempo acaba por ser um veículo de transmissão de preocupações pessoais e essa [a guerra] é uma delas. Acho que nunca aconteceu a ninguém da minha geração em que as coisas deixam esta sensação de perigo iminente, de pôr em causa uma ordem que sempre conhecemos na nossa vida”, lembrou.

André Letria também rejeita a possibilidade de se restringir pessoalmente na abordagem a qualquer temática em livro ilustrado.

“Nem pensar. E aplico isso mesmo a questões mais próximas de nós, como as questões de linguagem de que se fala muito. (…) Tenho a sensação de que com essa visão do mundo, que muita gente tem hoje, em que se usa o pretexto da inclusão para tentar definir novas regras, corre-se o risco de que seja ele próprio autoritário”, opinou.