O músico recorreu ao heterónimo de Fernando Pessoa Ricardo Reis para sustentar todo o projeto: “Há uma cor que persegue/ e hora a hora/ da sua cor se torna/ a cor que é minha alma”.

“Acho que este verso do Ricardo Reis traduz muito bem toda esta inquietação que provocou esta trilogia das cores”, disse o pianista e compositor em entrevista à agência Lusa.

Filipe Raposo sugeriu substituir a palavra “cor”, no verso de Ricardo Reis, por “melodia”, para explicar melhor o projeto: “Há uma 'melodia' que persegue/ e hora a hora/ da sua 'melodia' se torna/ a 'melodia' que é minha alma”.

"Há uma ligação direta da cor com esta dimensão musical”, disse o pianista. “De certa forma, sinto que uma melodia me acompanhou durante esta trilogia, estes seis anos, esta longa jornada, e me ajudou a descobrir aquilo que cada uma destas cores podia significar”.

O músico realçou "a dimensão sociológica e a artística” desta sua reflexão sobre a cor: "Dimensão sociológica, porque a cor está presente de diversas formas, até como arquétipo, ou seja, está enraizada em antigas tradições, códigos culturais, mais consciente ou inconscientemente neste coletivo; e, na [dimensão] artística, refira-se o ocre, o pigmento que sai da terra, e um dos pigmentos usados nas gravuras rupestres, de cor avermelhada, que quase simboliza o sangue que dá origem à vida.”

"Desde os primórdios da Humanidade que a cor nos acompanha de diferentes formas", acrescentou Filipe Raposo. A trilogia é, também por isso, "uma reflexão e uma homenagem à cor, neste caso às três cores de Orfeu", o lendário poeta e músico da mitologia grega.

A trilogia estava prevista terminar em 2023, mas a pandemia atrasou o processo e justifica o seu termo dois anos mais tarde.

“Devido à COVID-19 ficámos cerca de ano e meio em ‘stand-by’, com dois momentos praticamente parados. Este atraso deve-se a isso”.

Questionado sobre a capacidade de manter o foco criativo num projeto ao longo de seis anos, com outros pelo meio, como a composição da banda sonora do filme “Lo Que Queda de Ti” (2025), de Gala Gracia (Melhor Banda Sonora Original no Festival de Cinema de Málaga, em março passado), Filipe Raposo respondeu: “Estamos habituados a controlar projetos diferentes com ‘timings’ diferentes e com finalizações diferentes também”.

“Na realidade, isto é, mais ou menos, como termos ao lume várias panelas", acrescentou o músico. "Estamos a trabalhar, simultaneamente, em vários projetos, alguns com um prazo mais curto em termos de finalização, outros médio, e outros são trabalhos de fundo, como uma espécie de maratona, como é o caso desta trilogia”.

Sobre o livro, “Variações do Branco”, tal como os dois anteriores - “Ocre” e “Obsidiana” -, Filipe Raposo disse à Lusa que “tem uma componente visual e outra de textos", alguns de sua autoria, outros de autores que considera importantes, como Ésquilo, Fernand Braudel e Pedro Prista, que o "influenciaram no processo criativo". Inclui também algumas citações de autores como, por exemplo, José Leite de Vasconcelos.

As imagens são fotografias da sua autoria. “Uma espécie de estudo de cor sobre a luz, com base no livro ‘Elogio da Sombra’, do arquiteto japonês Jun'ichiro Tanizaki [1886-1965]. De certa forma, o que tentei fazer ao explorar o branco e as suas variações, e também a partir da sombra e do negro que vinham do disco anterior, [foi] tentar explorar toda esta dimensão visual que é a luz, e a forma como a luz invade o espaço e cria todos estes matizes e a variação entre o branco e a sombra”.

O álbum “Variações do Branco” é constituído por 12 composições, todas de autoria de Filipe Raposo, excetuando o coral “Ich ruf' zu dir, Herr” ("Clamo a ti, Senhor Jesus Cristo", em tradução livre), de Johann Sebastian Bach, com arranjos de Ferruccio Busoni (1866-1924), que transpôs para piano muitas peças de Bach, compostas para cravo e órgão.

Filipe Raposo reconheceu à Lusa uma forte referência dos territórios do sul nas suas composições. “Este ‘branco’, eu diria, que é um diálogo entre duas geografias, o norte e o sul. Há aquelas planícies geladas do norte, e as do sul que são de areia. Um diálogo permanente que se vai manifestando de várias formas".

No novo álbum, "rapidamente entramos nesta geografia do sul, onde nós estamos", afirmou. "Pertencemos a um sítio muito especial que, por natureza é mediterrânico e, geograficamente, atlântico, como afirma [o geógrafo] Orlando Ribeiro. Entramos por este território a sul, e eu vou explorando referências como o solstício, o dia mais longo do ano, ou o suão, o vento que vem do sul e entra pela Península Ibérica”.

“Suão” é o título de uma das peças do álbum, que abre com “A Idade do Pão”, sobre a qual, Raposo afirmou: “Aqui encontramos o branco-pão, que acaba sendo um alimento transversal a toda a humanidade. Há outros pães mais escuros, conforme o cereal utilizado, mas há aqui uma citação e homenagem a este alimento que é milenar que tem 10.000 anos de existência, segundo as mais recentes datações”.

“Da Minha Janela Vejo o Grande Sul” é outra composição com um certo cariz biográfico, pois remete para onde vive o pianista e compositor. “De facto, da minha janela vejo o Tejo e a Margem Sul. Para nós, como afirma José Álvaro de Morais no filme ‘Zéfiro’ [1993], o sul está sempre à vista, do outro lado não se fala de Mediterrâneo, e diz também que é um sentimento difícil de se explicar para quem habita este sul, como dizia o Orlando Ribeiro, a sua natureza mediterrânica, mas geograficamente atlântica”.

Filipe Raposo sustenta o 'branco' de outras composições: “Crepúsculo da Tarde”, “ligada a uma luz especial do final do dia, depois passo para o linho, ‘Fiadas’, ‘Noites Brancas’, 'Crepúsculo da Manhã’”, temas que são “Variações do Branco”.

Outro tema é “Prometeu”, “com o fogo e a luz que ilumina a Humanidade, esta luz simbólica do conhecimento”, fechando o álbum com o coral de Bach, “que é uma outra luz, algo espiritual”.

"Variações do Branco", o álbum, vai ser apresentado ao vivo no próximo dia 23 de maio no Teatro Viriato, em Viseu, no dia 13 de junho no Centro Cultural Raiano, em Idanha-a-Nova, no distrito de Castelo Branco, e no dia 19 de junho, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa.

Filipe Raposo tem colaborado com orquestras internacionais, apresentando-se em salas como Bozar, em Bruxelas, Ópera de Ruão, em França, Fundação Calouste Gulbenkian, ou a Sala S. Paulo, na cidade de S. Paulo.

O pianista trabalhou, em concertos e em gravações discográficas, com músicos como Amélia Muge, Sérgio Godinho, José Mário Branco, Jorge Palma, Vitorino.

Entre a obra do pianista e compositor contam-se a banda sonora do documentário “Um Corpo que Dança — Ballet Gulbenkian 1965-2005” (2022), de Marco Martins, e a ópera “As Cortes de Júpiter” (2022), encenação e adaptação dramatúrgica de Ricardo Neves-Neves, a partir da obra de Gil Vivente.

Licenciado em piano pelo Conservatório Nacional de Lisboa, concluiu o mestrado em Piano Jazz Performance pelo Real Conservatório de Música de Estocolmo, tendo sido bolseiro da Real Academia de Música de Estocolmo.

Filipe Raposo é licenciado em Composição pela Escola Superior de Música de Lisboa.

Entre os seus álbuns, contam-se “The Art of Song vol.2: Between Sacred and Profane” (2023) e a banda sonora concebida para o filme mudo “O Primo Basílio” (1923), de Georges Pallu, editado em DVD, em 2024, além da trilogia das cores.