Em declarações à agência Lusa, Octávio Fonseca sublinhou “a urgência" de "reeditar a discografia de Luís Cília, que se encontrava esgotada no mercado". O livro, segundo o seu autor, "pretende dar a conhecer a obra e a carreira de alguém fundamental na música portuguesa”.

Luís Cília, por seu turno, disse à Lusa que sempre foi “discreto, por feitio”, mas pensava que “ia morrer incompreendido” porque os seus discos, “à exceção de uns de música para bailado”, nunca tinham saído em CD. “Portanto, o que tinha feito", editado há décadas em vinil, "poucas pessoas conheciam”.

Se o livro com 11 CD, publicado pela Tradisom sob o nome do compositor, "Luís Cila”, permite dar luz a uma carreira de mais de 50 anos, Cília por seu lado realçou o esforço de um professor no Alentejo, Leonardo Verde, que sem o conhecer fez um 'site' sobre si.

“Ele sabe mais sobre mim que eu”, disse Cília que confessou ter materiais dispersos da sua atividade, “mas não um arquivo arrumado”.

“Ainda hoje gosto muito de fazer música para cinema", disse o compositor à Lusa. "Nunca olhei muito para trás, por isso as pessoas que ouvirem os CD, podem ver a evolução que fui tendo. Cada disco era um passo mais na aprendizagem que estava a ter”.

Luís Cília editou o seu primeiro álbum, “Portugal. Angola. Chants de Lutte”, em 1964, em Paris, onde se encontrava exilado. Este disco incluiu algumas letras de sua autoria, e "chama ‘os bois pelos nomes’”, disse Octávio Fonseca, numa referência ao tempo da ditadura.

Cília foi para França para evitar ao serviço militar obrigatório e o combate na guerra colonial, contra movimentos pró-independência. Em França, por intermédio da cantora e compositora Colette Magny, gravou o primeiro álbum para a discográfica Le Chant du Monde.

O interesse de Octávio Fonseca por Cília começou quando lhe ofereceram este seu primeiro álbum, que andou de casa em casa dos seus amigos. Alguns até o gravaram em cassette, tal foi o interesse que suscitou, recorda.

“Foi a primeira vez que houve canções com as letras tão claras como aquelas. Embora o conteúdo das do Adriano [Correia de Oliveira] e as do Zeca [Afonso] fosse político, eles tinham de se expressar por metáforas, nunca lhes seria possível criticar abertamente a ‘democracia’ entre aspas de Salazar. O Luís Cília, estando em França, podia fazê-lo abertamente”, disse Fonseca.

À Lusa o compositor reconheceu que este seu primeiro disco “foi muito panfletário, foi uma necessidade de falar diretamente dos problemas" que se sentiam em Portugal, um regime de partido único, sem liberdade de expressão, da guerra colonial, do Governo de Oliveira Salazar.

"Mas eu sempre tive a preocupação em cada disco que fiz depois de pôr poetas que falavam de amor. No segundo disco ['La Poésie Portugaise. De nos jours et de Toujours-1', 1967], inclui um poema de Carlos Oliveira".

Cilia fez “canções com grandes letras, tornando-o um importante divulgador da poesia portuguesa, coincidindo com o seu objetivo que era construir canções de muita qualidade”, disse Octávio Fonseca à Lusa, referindo a escolha por poetas “não afetos à cultura e à ideologia do regime” autocrático português, derrubado pela Revolução de Abril de 1974.

Octávio Fonseca realçou o pioneirismo de Cília, em Portugal: "O primeiro disco dele foi editado no mesmo ano em que saiu a ‘Trova do Vento que passa’, de Adriano Correia de Oliveira, e José Afonso tinha editado ‘Menino do Bairro Negro’ e ‘Os Vampiros’, no ano anterior, em 1963”.

Para o investigador, Luís Cília “é um dos três fundadores da balada de intervenção em Portugal”, a par de Adriano e José Afonso, movimento que “só foi desencadeado quatro anos depois, em 1968, e teve um grande incremento em 1969 com o programa televisivo ‘Zip Zip’”, na RTP.

Fonseca realçou o talento, “a um nível muito alto”, de Luís Cília como compositor e instrumentista.

“Em cada disco tem várias canções que são de um nível superior”, realçou Fonseca, que também é músico, qualidade que referiu, pois neste trabalho permitiu-lhe “ver certos aspetos em termos musicais e até da letra que, se não fosse músico, não conseguiria”.

O reconhecimento unânime "da música de Luís Cília em França e na Europa não tem correspondência" em Portugal, quando regressou, em 1974. "Apesar de ser muito admirado por certos setores do público, foi absolutamente ignorado pela comunicação social”, lamentou Octávio Fonseca que afirmou: “Tem toda a razão em sentir-se injustiçado no seu país”.

Cília estudou composição em França e gosta de compor para imagens. Os primeiros convites, em Portugal, chegaram-lhe da ex-Companhia de Dança de Lisboa.

Para Octávio Fonseca esta opção pela composição “foi um certo refúgio”, pois “não era muito solicitado para cantar, apesar de ter tentado apresentar-se em alguns recitais, até com a exibição de dispositivos”.

O livro lista os filmes e séries televisivas com música de Cília, desde “O Salto” (1967), de Christian de Chalonge, a “Abandonados”, de Francisco Manso, e “Conceição Matos”, de Edgar Pêra, ambos de 2022.

A banda sonora de “Os Gatos não têm Vertigens” (2014), de António-Pedro Vasconcelos, valeu-lhe um Prémio Sophia, da Academia Portuguesa de Cinema, em 2015.

Para Cília, “cada vez era mais difícil gravar discos em Portugal”. “Eu tinha tido sempre, desde o meu primeiro disco, uma relação de confiança com os editores [discográficos] que viam o disco no final. Depois começaram a querer ouvir antes, não para ver se era interessante, mas para ver se vendia ou não”.

“As editoras discográficas deixaram de ter confiança nos artistas como fundo de catálogo", o que dava "tempo de assentarem, de progredirem". "É um bocado o ‘mastiga, deita fora’ e não quis entrar nesse tipo de esquema”.

O músico afirmou que tem pena dos jovens de hoje que querem cantar e fazer discos porque “têm muito mais dificuldades” do que ele teve.

“O Léo Ferré, um dia aqui em minha casa, disse-me: ‘Se eu começasse agora não me safava’”.

Em Portugal, Cília ainda gravou dois discos, fora das discográficas, um, dedicado a Jorge de Sena, “Sinais de Sena”, e outro a David Mourão-Ferreira, “Penumbra”, parcialmente já a custas suas.

“'Luís Cília' é um conjunto - a composição, a letra, a instrumentação, a maneira como canta, tudo é um ato único que não se deve fragmentar”, argumentou Octávio Fonseca, realçando que o músico foi introduzindo sempre outros instrumentos, como o contrabaixo.

“Ele nunca ficava parado, de um disco para o outro acrescentava sempre mais qualquer coisa. Houve uma evolução contante ao longo da sua discografia”.

Luís Cília nasceu há 81 anos em Nova Lisboa, atual Huambo, em Angola. Aos cinco anos começou a viver em colégios internos, o que se repetiu durante anos, de Angola Colégio Nun'Álvares Pereira, em Tomar. Sempre "sem acesso a cultura, quer geral quer política".

No final do liceu começou a frequentar a Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, onde conheceu Alfredo Margarido (1928-2010).

Nesta altura - recorda - era um “músico roqueiro, admirador de Elvis Presley" (1935-1977).

Cília contou à Lusa que quando viveu em Angola, um amigo da família lhe trazia esses discos da África do Sul. Durante esse período nunca cantou ou tocou, isso só veio a acontecer depois. Este e outros silogismos sobre a carreira de Cília são esclarecidos na obra agora editada pela Tradisom, que contou com a colaboração permanente e atenta do biografado.

“Foi o Alfredo Margarido que me apresentou o [poeta] Daniel Filipe, em 1962, a quem eu devo tudo”, disse Cília sobre o autor de "A invenção do amor".

"Daniel Filipe mostrou-me o que faziam Leo Ferré e Georges Brassens, e foi a partir daqui que comecei a musicar a poesia portuguesa”.

Octávio Fonseca qualifica este encontro como “decisivo”.

“Eu não me considero, por exemplo, revolucionário", afirmou Cília. "Quando vim de França, depois do 25 de Abril [de 1974], havia muitos revolucionários, e sempre achei que ser revolucionário é tudo aquilo que nos transforma, que nos melhora”, disse o músico, recordando uma entrevista na qual se referiu ao fadista Alfredo Marceneiro (1891-1982) como “um cantor revolucionário”.

“Na sua medida era, porque, de facto, a profundidade do canto do Alfredo Marceneiro, a poesia de Eugénio de Andrade e a poesia de amor de Pablo Neruda, são revolucionárias. Eu sempre tive este conceito”, justificou Cília à Lusa.

Escrever este livro levou cerca de seis meses. Mas o autor, Octávio Fonseca, contou logo à partida com a base de dados sobre música portuguesa que constrói há 30 anos. “Só sobre Luís Cília tinha 200 entradas”, entre livros, artigos e críticas em jornais e revistas.