Se uma imagem pode valer mais do que mil palavras, também há combinações de palavras que têm o efeito de mil imagens. As de Polly Jean Harvey conseguem, desde o início da década de 90, originar retratos ao alcance de poucos letristas e compositores, mas em "Let England Shake" ganham outra dimensão.
"O álbum lida com temas mais universais como conflito, guerra, perda, lealdade, amizade e amor. Mas com um olhar muito mais externo do que centrado no mundo interior de alguém. (...) Há uma grande diversidade de narrativas no disco. Recorri à primeira e terceira pessoa - adoptando diferentes vidas e personagens", contou a cantora ao semanário inglês New Musical Express (NME).
"Let England Shake" está, de facto, muito longe da raiva e sexualidade incontidas de "Rid of Me" (1993), do romantismo de "To Bring You My Love" (1995) ou das crónicas (um pouco mais apaziguadas) do new yorker "Stories From the City, Stories From the Sea" (2000).
O seu tom por vezes aterrorizante aproxima-se mais do fantasmagórico "White Chalk" (2007), embora com uma perspectiva bem mais ampla, partindo da história de uma Inglaterra imperialista para reflectir sobre a guerra (tema que pesquisou nos últimos tempos, chegando a falar com pessoas que estiveram no Iraque ou no Afeganistão).
Disco político? Há quem o sugira, mas PJ Harvey diz que não. "Procurei sempre um ponto de vista humano, porque não me sinto qualificada para cantar de um ponto de vista político. Eu canto como um ser humano afectado pela política e para mim essa é a melhor maneira", explicou numa entrevista à BBC.
Polaroids de figuras extintas
Não sendo um disco declaradamente conceptual, as suas canções insistem nos mesmos temas, é possível identificar um fio condutor no alinhamento (do arranque com a faixa-título ao requiem para um soldado desaparecido de "The Colour of the Earth") e, por isso, "Let England Shake" acaba por ser mais do que a soma das partes e um dos álbuns mais coesos da autora de "Down by the Water".
As situações que aborda tanto decorrem antes como durante ou depois da(s) guerra(s) e, pelas imagens de crueza e desencanto que oferecem, o disco até podia pedir um subtítulo emprestado a "Polaroids from the Dead", livro de Douglas Coupland, pelos seus vários retratos de personagens mortas (física e/ou emocionalmente).
Apesar de a perda ser o motor de várias canções, o disco também deixa, a espaços, uma ode a Inglaterra, caso da declaração de amor (e ódio, ou pelo menos decepção) de "England". Nesse tema, fica ainda evidente um dos elementos do álbum que poderá gerar alguma resistência: as variações vocais, que não são propriamente uma novidade no universo de PJ Harvey mas que aqui surgem ancoradas, como nunca antes, nos agudos.
Primeiro estranhamos, depois acabamos por aderir, e essa estranheza volta a fintar-nos noutros episódios - da marcha de guerra com corneta em "The Glorious Land" (pormenor que faz, afinal, todo o sentido numa grande, grande canção) ao sample de "Blood and Fire", do jamaicano Niney the Observer, em "Written on the Forehead". Um momento reggae num disco de PJ Harvey? Provavelmente nem a própria esperaria isso até há poucos anos, muito menos na canção de avanço de um novo disco. Mas depois de alguma estupefacção inicial, a experiência fica como um dos pontos altos de "Let England Shake", acompanhando a fricção de emoções no momento em que uma cidade é invadida.
As mesmas companhias numa atmosfera diferente
As incursões por territórios sonoros pouco óbvios - complementadas por variações incomuns com a auto-harpa ou a guitarra - mantêm intrigante uma artista que nunca gostou de se repetir. Com a eventual excepção de "Uh Huh Her" (2004), em parte um baralha e volta a dar, Harvey tanto explorou o rock e o blues, no início do seu percurso, como mergulhou num trip-hop contrastante e desfocado ("Is This Desire?", de 1998).
Já as colaborações têm mantido quase sempre os mesmos envolvidos, e aí "Let England Shake" não é excepção: Flood, John Parish e Mick Harvey também estão por aqui. Mas não da forma que estiveram até agora. "Embora tenha trabalhado com estes homens durante anos, trabalhámos de uma maneira diferente", recorda Harvey ao NME ao abordar as sessões de gravação numa igreja do século XIX em Dorset, condado britânico onde reside.
"Gravar naquela igreja criou uma atmosfera que tornou o som único. (...) Tocámos a maior parte da música ao vivo e não impus regras", contou também, e um dos exemplos desse "som único" resulta na carga fúnebre e solene de "On Battleship Hill", belo e tristíssimo dueto com John Parish (um dos três do disco) rendido ao poder da "natureza cruel".
Do campo de batalha para a igreja; da igreja para os palcos
Longe da tranquilidade de uma igreja, os concertos de apresentação do disco em Portugal, agendados para 25 e 26 de Maio na Aula Magna, em Lisboa (ambos esgotados), deverão contar, ainda assim, com uma aura singular. Um dos prováveis espectadores é The Legendary Tigerman, fã confesso de Polly Jean que já a viu ao vivo em duas ocasiões. "Acho que se nota muito bem quando um concerto é plástico e quando as pessoas estão ou não num concerto. E no caso da PJ Harvey, ela definitivamente estava. Gostei muito do que ela passou e de como passou", salientou o autor de "Femina" ao SAPO Música.
Além dos palcos, essa intensidade também preenche, de uma ponta à outra, o alinhamento de "Let England Shake" - e se o disco nos pede alguma disponibilidade e entrega para a descobrirmos, isso só joga a seu favor.
PJ Harvey apresenta hoje o disco ao vivo em Paris. O concerto arranca às 20 horas e é transmitido em directono sitehttp://pjharvey.net. "Let England Shake" pode ouvir-se na íntegra no Music Box.
Videoclip de "The Words That Maketh Murder":
Videoclip de "The Last Living Rose":
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