Foi, nitidamente, um dia menos movimentado do que o anterior. A organização do Delta Tejoavançou que, neste sábado, passaram pelo Alto da Ajuda cerca de 16 mil pessoas (um decréscimo face aos 17 mil registados sexta-feira). Mas para quem andou pelo recinto ao longo da tarde e da noite a diferença entre os dois dias pareceu bem maior.
Mais uma vez dominado por um público muito jovem (grande parte ainda adolescente), o Palco Delta nunca contou com uma adesão tão forte como nos concertos de Buraka Som Sistema e Shaggy. Nem com episódios tão explosivos. Mas o calor de uma voz ou o dedilhar de uma guitarra foram, muitas vezes, mais do que suficientes para uma noite memorável.
Quando o fado é contagiante
Não façam silêncio que se vai cantar o fado. A expressão é, agora, reinventada. Música da cultura mais intrínseca de Portugal, o fado aparece por Ana Moura sem descaracterização, mas com uma nova roupagem no que a ouvi-lo diz respeito. Há não muitas décadas atrás, seria impensável o fado fazer parte de um festival de Verão. Não é a primeira vez que tal acontece, mas esta noite, Ana Moura provou que tem todas as condições para ser uma estrela de topo.
Dona de uma voz incomparável, a fadista, que aqui reviveu, mais uma vez, um dos temas que interpretou com os Rolling Stones ("No Expectations"), prova que o fado não é triste, que o fado, mesmo cantando o lamento, pode agarrar o público.
Se ao início o público não era muito, foi-se compondo à medida que se ouvia a voz quente. Ana Moura consegue unir várias gerações, sobretudo espectadores mais novos que foi ali ver outros sons bem diferentes. Quase chegados à hora do final doconcerto, ouviam-se vozes de lamento, que “não devia acabar tão cedo”.
Munida de um fantástico quarteto de cordas, Ana Moura convidou os Toca a Andar e conferiu ao espectáculo um tom ainda mais português, com tambores, flautas, trompas e acordeão. Depois de percorrer os seus dois últimos álbuns ("O que foi que aconteceu" mereceu rasgados aplausos), a fadista da voz quente e figura bonita fechou a lembrar Amália, com "Casa da Mariquinhas".
A noite continuou em português, desta vez com sotaque
Não é a primeira vez que Ana Carolina sobe ao palco do Delta Tejo, por isso não é de estranhar que já tenha a sua legião de fãs em Portugal, se bem que muitos dos que assistiam ao concerto fossem brasileiros. Mas no meio da amálgama de gente, as diferenças nem se faziam sentir. A brasileira, com uma voz poderosa, foge um pouco ao estilo de músicaconterrânea que por cá aparece, enveredando muito mais pelo pop-rock, ainda que com incursões pelo samba puro e, em algumas canções, transportando a sonoridade do tango argentino.
Ainda que as suas músicas tratem o desamor e o desencontro, Ana Carolina nunca esteve longe do público, que vibrou ao longo da hora de espectáculo. No entanto, não se pode fugir aos hits da cantora: "Quem de nós dois" e "Isso ai" (versão de "The Blower’sDaughter", de Damien Rice, em dueto com Seu Jorge), que permitiram ter à cantora um coro na plateia.
Destaque, também, para o samba "Cabide", que fez para Martinália, e que esta noite interpretou, fugindo ao estilo que por norma a caracteriza. Ana Carolina tem uma voz inconfundível, um estilo muito próprio, e mais uma vez o provou.
O poder interventivo de Nneka
O encerramento do segundo dia no palco Delta Tejo esteve a cargo de Nneka. Num registo diferente dos anteriores,a nigerianavai beber ao reggae, ao hip hop, ao dube à soul para criar um estilo de liberdade. E não se pode deixar de lado a faceta de intervenção da cantora filha de pai nigeriano e mãe alemã, já de si duas culturas tão díspares.
A par de "Heartbeats", banda-sonora de um anúncio e atema que mais facilmente o público associa a Nneka, "VIP" foi a que mais fez reagir os espectadores - também muito a pedido da cantora, para quem só faz sentido cantar esta música em uníssono, como se de uma forma de combate de tratasse. Uma canção de cariz totalmente interventivo, a realçar que a música em si mesma pode condensar poder e não só entretenimento.
Humilde e com um sorriso terno, Nneka não evitou partilhar o protagonismo com alguns elementos da sua banda. O baixista assinalou mesmo um dos momentos de antologia, não a tocar mas a cantar, usando a voz como instrumento numa sucessão de vocalizações aceleradas.
Este crescendo manteve milhares atentos antes de se desfazerem em gritos e aplausos num episódio que teria paralelo já perto do final, quando Nneka e o guitarrista se atiraram ao rock.
A voz da cantora, acompanhada por riffs, levouà primeira despedida (antes do encore) e deixou muitos a gritar o seu nome -ocasião onde outros tantos entoaram a melodia de "Seven Nation Army", dosWhite Stripes, queNneka tinha misturado com uma das suas canções durante a actuação. Curiosamente, esse tema surgiu também no concerto de Shaggy na noite anterior, mas desta vezfoi revisitadonuma actuação onde o ritmo cativou sem eclipsar a força da palavra.
"A nossa língua", disse ela
Foi através da língua portuguesa que Nancy Vieira se dirigiu ao público que rumou até ao Alto da Ajuda.A cabo-verdiana Nancy Vieira foi uma das grandes atrações do Palco Jogos Santa Casa/Beck'Stage, onde actuou ao final da tarde. "É bom regressar a casa, a um sítio em que falam a nossa língua", confessou.
Vestida de preto e branco, Nancy Vieira representou a mestiçagem da língua portuguesa e falou durante todo o seu concerto sobre a importância que a língua de Camões e Cesária levaram para o além-mar.
Num ambiente festivo e tranquilo de final de tarde, trouxe o balancé cabo-verdiano até a Lisboa. O público mais novo vibrou com os funaná, enquanto os mais velhos aproveitaram as mornas. Bem ao jeito quente africano, Nancy foi puxando pelos presentes fazendo com que o recinto acabasse por se tornar numa festa de família. A cantora falou da importância da união entre aqueles que falam português e, entre dança e conversas, apelou ao laço entre as diferentes nações que têma língua portuguesa como palavra-mãe.
NoPalco Jogos Santa Casa/Beck'Stage actuaram também os brasileiros Os Mutantes, em modo razoavelmente empenhado mas sem a chama que os distinguiu há décadas, num concerto para alguns convertidos e uma maioria de curiosos sem grandes sinais de entusiasmo. Danae, Ska Cubano e Mary B completaram a lista de nomes para o segundo dia do festival no mesmo espaço e Susana Félix abriu o Palco Delta ao fim da tarde.
Este domingo, no último dia da quarte edição do Delta Tejo, o Alto da Ajuda recebe Martinho da Vila, Cacique '97, Quantic ans His Combo Bárbaro, Batida ou Grupo Revelação.
Texto @Eliana Silva, Gonçalo Sá e Inês Henriques
Fotos @Eliana Silva
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